[Rio de Janeiro], 5 de abril de 1956

Minha querida,

Recebi sua carta à hora em que ia saindo de casa. Li-a de um só trago, voltei ao quarto para guardá-la e desci – um amigo me esperava lá embaixo. Fomos conversando até a cidade, e gostei quando me despedi dele, porque o tempo todo era como se eu o estivesse enganando, era como se eu tivesse comigo uma fortuna e não lhe contasse, era como se, conversando com ele, eu estivesse ouvindo uma terceira pessoa invisível, anjo ou fala ao meu lado, e não lhe pudesse mostrar.

Anjo, fada, passarinho azul… Passei o dia em repartições cuidando de uns negócios, esperando em guichê, fazendo requerimento, pregando estampilha, discutindo com funcionários, ouvindo explicações, providenciando pequenas coisas miúdas, talões, documentos, certidões – e nas salas, tristes, ruidosas, cheias de gente a esperar, a se impacientar, a discutir, havia como que uma redoma de silêncio onde meu passarinho azul cantava, e eu apenas o ouvia. Eu devia ter o sorriso de um louco manso, eu falava em decretos e portarias e pensava em músicas e poemas, eu deslizava, feliz e sutil, entre a gente que se acotovelava; enquanto outros esperavam na fila eu descansava no ar, em doce levitação.

Cheguei em casa tarde, foi tempo de tomar uma chuveirada, mudar a roupa, reler sua carta e tocar, com uma velha amiga, para o Municipal. E chegamos atrasados, perdemos toda a primeira parte de Giselle.[2] Não fez mal. Começou a segunda parte – e a certa altura veio o milagre. Eu me chamava Oleg Briansky,[3] vesti em mim mesmo um belo corpo e uns trajes de Hamlet; eu, apenas eu, era o belo príncipe – e você Giselle, era Alicia Markova.[4] Como você dançou bem! Alto, sério, esplêndido, eu servia apenas para fazer você mais fluida, só o leve espírito da música no ar. Nunca ninguém foi tão alma; você deixou de ser mulher, era um fantasma gentil esvoaçando entre minha glória e meu tormento, toda pura e toda linda – e, quando se esvaneceu, eu, pesado de chumbo, me abati.

A gente que enchia o teatro nos aplaudiu com fúria arrebatada. Passei pelos corredores absorto, sem ver ninguém…

Quando voltamos ao palco, sabíamos que o alto momento inefável já podia existir. Mas nossa vida continuava. Eu vim vestido de Aldo Lotufo[5] e você de Beatriz Consuelo.[6] Como você estava bela, Beatriz! Não mais sílfide: mulher, esplêndida mulher moça e bela, com pernas, cintura, ombros, ao mesmo tempo sólida e ágil, músculos de beleza se lançando com um sorriso no ar, volvendo certa, feliz, na geometria sensual do balé…

Agora estou sozinho em casa; ergo-me e olho o mar todo azul, na glória da manhã. E num gesto sagrado e pueril eu beijo a sua carta, como um poeta antigo.

Arquivo Rubem Braga/ Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.

[1] Publicada, nessa data, no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, e republicada na revista Claudia, Rio de Janeiro, janeiro de 1962.
[2] N.S.: Balé que tem roteiro de autoria do poeta romântico Theóphile Gautier. Estreou em 1840, em Paris.
[3] N.S.: Oleg Briansky (1929-), dançarino, coreógrafo e diretor artístico, nascido na Bélgica.
[4] N.S.: Alicia Markova (1910-2004), bailarina e coreógrafa inglesa.
[5] N.S.: Aldo Lotufo (1925-2014), primeiro bailarino do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro durante as décadas de 1950, 1960 e 1970.
[6] N.S.: Beatriz Consuelo (1931-2013), primeira bailarina do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro na década de 1940.