Outro dia escrevi aqui sobre Manuel Bandeira e me deu saudades, vontade de falar mais nele, o que faço agora para começar 2016, quando, em abril, se completam 130 anos de seu nascimento. Acabo de ler, em carta, no arquivo de Decio de Almeida Prado, a recusa de João Cabral de escrever sobre os oitenta anos do poeta de Pasárgada, em 1966.
Naquele ano, Decio dirigia o prestigioso Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo e, como todos os bons editores de jornal do país, queria prestigiar o “velho bardo”. Uma das homenagens consistiria na publicação de um texto de seu conterrâneo, mas Cabral, gentil e cauteloso, declinou do convite. Quando se aproximou sua vez de se tornar octogenário, o que aconteceria em 2000, ele, Cabral, recebendo em sua casa, a equipe do IMS que preparava a edição do Cadernos de Literatura Brasileira, apontou para uma foto de Bandeira e disse: “Sabe do que ele morreu? De homenagem. Quando fez oitenta anos, foi tão homenageado que não saiu mais da cama. O próximo serei eu”.
Pode-se assim entender melhor o porquê de ele não ter querido engrossar a onda de festejos comemorativos no aniversário do conterrâneo. Achou que não devia contribuir para o cansaço do aniversariante, ainda que fosse apenas com um cansaço psicológico, causado pela possível emoção de um texto que escreveria no suplemento do jornal paulista. Quis poupar o já velho coração do bardo.
E não foi total exagero seu dizer que Bandeira “morreu de homenagem”. De fato, foram tantas naquele 19 de abril, ou em torno da data, que só em dezembro o novo octogenário achou tempo e disposição para responder uma carta de parabéns que lhe tinha sido enviada por Donana, a senhora que ele conhecera ainda mocinha nos primeiros anos do século XX, na cidade mineira de Campanha, onde fora buscar clima bom para tratar da tuberculose: “E sabe de uma coisa? Acho que puseram mau olhado nos meus oitenta, pois antes de completá-los eu estava com boa saúde, e depois foi uma doença depois de outra. O mês de novembro foi tomado por uma gripe que me prendeu em casa e na cama, sem ânimo para nada. Agora estou bem, mas ainda fraco” – escrevia Bandeira ao seu amor de juventude.
Não se tratou de mau olhado, está claro, e sim de excesso de entrevistas a jornais de todo o Brasil, de incontáveis telefonemas que teve de atender, assim como de convites de jantares que não pôde recusar, sem contar – isso era de fato ruim – o comparecimento a cerimônias festivas.
Basta dizer que no dia 18, véspera do aniversário, ele recebeu a Ordem Nacional do Mérito, medalha que lhe foi entregue pelo então presidente Castelo Branco. Na ocasião, o poeta, que se recusara a usar os ouros dos bordados do fardão de acadêmico – só o envergou uma vez, no dia da posse, depois passaria a usar fraque –, manifestou-se assim diante do general: “Esta é a primeira comenda que recebo em minha vida. Sinto-me tão desvanecido que não quero outra senão esta”.
Em carta a Joanita Blank, a aluna particular de cuja educação ele se encarregou quando morava na casinha da rua do Curvelo, em Santa Teresa, escrevera em 5 de setembro: “Os meus oitenta anos deram um trabalho de correspondência enorme, ainda estão chegando coisas”. Provam as cartas, desse modo, que o poeta levou o ano de seu aniversário dedicado à correspondência.
“O bom Manuel Bandeira”, escreveu João Cabral, e não foi o único que usou esse adjetivo. Muitos contemporâneos do poeta da “limpa solidão” lhe ressaltaram a bondade e a humildade. Poucos atingiram a síntese que Rachel de Queiroz fez no texto intitulado simplesmente “Manuel”, em que se lê:
Meu Deus, eu queria poder falar de Manuel sem cair na ênfase – ele que era a própria antiênfase. Na palavra enxuta, na carne enxuta, na vida limpa, na aparência frágil era, na sua arte e na sua pessoa, como feito de cristal: claro e rijo, sim, era um cristal puro. As coisas de fora não o penetravam, nada era capaz de toldar a sua limpidez essencial. E sendo assim, cristalino, adamantino, capaz de arestas cortantes como o próprio cristal, tinha ao mesmo tempo o dom de suscitar amor.
Meu amigo, o advogado e bibliófilo Plínio Doyle, que morreu no ano 2000, me mostrou certa vez uma folha de papel em branco assinada por Manuel Bandeira. Mostrou-me rindo, dizendo da confiança que o cliente lhe tinha e da bronca que dera no poeta por correr tal risco, deixando sua assinatura em folha limpa: “Nunca mais faça isso”, dissera o bom advogado ao bom Manuel Bandeira.