Na introdução do livro Cartas extraordinárias: amor, lançado neste ano pela Companhia das Letras, Shaun Usher, organizador da coletânea, conta que as cartas, “a forma de comunicação mais íntima”, são uma fonte de obsessão motivada pela correspondência de longa distância que estabeleceu com uma namorada. “Não tínhamos imaginado que nossas cartas seriam tão divertidas e inspiradoras, nem que ganharíamos um presente tão perfeito no começo do nosso relacionamento.” Dez anos depois, os dois se casaram. O livro é dedicado a ela.
Nascido no Reino Unido em 1978, Usher é criador dos blogs Letters of Note e Lists of Note, que deram origem, respectivamente, aos livros Cartas extraordinárias (2014) e Listas extraordinárias (2016), também publicados no Brasil pela Companhia das Letras. A nova coletânea, traduzida por Mariana Delfini, inicia com uma carta escrita por John Steinbeck, autor premiado com o Nobel de Literatura, para seu filho Thomas, em 1958, quando ele tinha apenas catorze anos e havia se apaixonado pela primeira vez. Segundo Usher, Steinbeck manteve correspondências com “todo tipo de gente, de colegas autores a presidentes dos Estados Unidos”, mas esse texto singelo direcionado ao filho seria a “sua carta mais importante”.
O pai diz que se o garoto está apaixonado, “ótimo — essa é a melhor coisa que pode acontecer com qualquer pessoa” e o aconselha a não deixar que ninguém deprecie isso. Um pouco adiante, encoraja o filho a não manter segredo e completa: “Pode acontecer de o seu sentimento não ser correspondido, por um motivo ou outro — mas isso não o torna menos valioso”. Por fim, conclui: “O importante é não ter pressa. O que é bom não escapa”.
Em seguida, acompanhamos uma carta comovente escrita por Simone de Beauvoir em 1950 para o romancista Nelson Algren, por quem, em meio a longa relação que manteve com Jean-Paul Sartre, ela foi convictamente apaixonada e com quem se correspondeu por quase duas décadas. Desolada depois de uma rejeição, Beauvoir escreve que seu coração “parece um mingau espesso e sujo”. Linhas depois, afirma que não está triste, mas sim “aturdida, muito distanciada de mim, sem acreditar que você está agora tão longe”. E pede que ele por favor se lembre de que ela nunca mais pediria para encontrá-lo — “não por orgulho, mas nosso encontro só vai significar alguma coisa quando você assim quiser. Então vou esperar. Perdi seu amor, e isso foi (e é) dolorido, mas não vou perder você”.
Entre as demais cartas, destaco a de um homem escravizado, Isaac Forman, que conseguiu fugir do estado da Virgínia, nos Estados Unidos, para Toronto, no Canadá, mas acabou deixando para trás a amada esposa, de quem foi separado, forçosamente, antes da fuga (“Posso dizer que já fui feliz, mas nunca serei de novo até vê-la; pois o que é a liberdade para mim se sei que minha esposa é escravizada?”); a da atriz Juliette Drouet dirigida ao escritor Victor Hugo, de quem foi amante por cinquenta anos (“eu sou apenas uma mulher que te adora”); a do escritor Vladimir Nabokov a Véra Slonim, com quem depois se casou, escrita meses após o primeiro encontro dos dois (“Não sei se você vai entender alguma coisa desta carta analfabeta… Mas tudo bem… Eu te amo.”); a da poeta Marina Tsvetaeva para o poeta Rainer Maria Rilke, escrita após a morte dele (“Você nunca estará muito distante: nunca inacessivelmente alto.”); a do compositor alemão Ludwig van Beethoven para sua misteriosa “Amada Imortal”, uma das cartas de amor mais comentadas da história do gênero (“O amor exige tudo e tem toda razão”); e a do escritor Machado de Assis para o amigo Joaquim Nabuco, a quem escreveu em 1904, por ocasião da morte da esposa, Carolina (“Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo”).
Também há cartas inusitadas, como a do escritor Paulo Mendes Campos para uma garrafa de uísque, datada de 1953. O texto, intitulado “Carta de separação”, foi originalmente publicado na coluna “Primeiro plano”, do Diário Carioca, do qual Campos foi colaborador. É a primeira vez que essa crônica, que faz parte do acervo do Instituto Moreira Salles, sai publicada em livro. “Por ti, quase fui preso; por ti, cheguei a brigar; por ti, fiz os piores papéis; por ti, perdi noites de sono; por ti, pedi dinheiro emprestado; por ti, prejudiquei minha saúde. No entanto, de que valeram tantos sacrifícios? (…) Hoje, só um insensato deixaria de ver que as nossas relações não podem continuar mais. Resta-me um pouco de equilíbrio e de amor próprio. Falta-me dinheiro para sustentar-te”.
Ao ler as correspondências reunidas em Cartas extraordinárias: amor, ficamos com a impressão que Beauvoir descreveu no final de sua carta a Algren. “Todas as palavras parecem bobas”. O que podemos notar em comum entre textos tão diferentes é que, mesmo para grandes escritores, a linguagem para falar de amor soa insuficiente.
Talvez, apesar de autores, destinatários e contextos extraordinários, essas cartas também tenham algo de profundamente ordinário. Afinal, como dizem os versos do poeta, todas as criaturas que já escreveram uma — ou um e-mail, uma mensagem de texto de amor que seja — são ridículas. Só perdem para aquelas que nunca escreveram.