Terá havido, na história da literatura, outro triângulo amoroso tão pacífico, consentido e feliz como o que uniu os poetas russos Borís Pasternak e Marina Tsivietáieva a Rainer Maria Rilke?
A história tem início no verão de 1926, quando se comemoravam os 50 anos de nascimento de Rilke, e o pintor Leonid Pasternak, que convivera com ele em Moscou, escreveu-lhe parabenizando-o pelo aniversário. Na carta, Leonid comunicou que seu filho, Borís Pasternak, escrevia poemas.
A surpresa foi quando Rilke lhe respondeu dizendo da admiração pela poesia de Borís, que conhecera em tradução francesa. Se, para Leonid, a resposta era inesperada, para o filho, a quem ele transmitiu imediatamente a notícia, saber que seus versos eram apreciados pelo autor de As elegias de Duíno provocara em sua alma o “efeito similar a um curto-circuito” – palavras que escreveu na primeira carta enviada a Rilke, em 12 de abril de 1926, transbordando de emoção: “A você devo o traço fundamental de meu caráter, a estrutura de minha existência espiritual”, escrevia um Borís Pasternak muito antes de se tornar o famoso autor do romance Doutor Jivago, em 1958.
Não teve mesmo pudor de confessar que, ao saber que Rilke o lia, foi à janela da sala de casa e chorou. Ali permanecera estático, sem palavras para falar com sua mulher e filho: “Me fazes emudecer de gratidão”, terminava por escrever, não sem antes lhe apresentar a amiga e também poeta russa Marina Tsvietáieva, autora do antológico “Poema do fim” – “o mais espantoso poema de amor do século passado”, nas palavras do tradutor paulista Décio Pignatari.
Ao enviar a Rilke o endereço de Tsivietáieva, Borís Pasternak soldava a primeira ponta do triângulo que irradiava do sanatório de Val-Mont par Glion, na Suíça, onde o primeiro se tratava da leucemia que o mataria no dezembro daquele mesmo ano. A segunda ponta, em Paris, onde morava Tsivietáieva, e a terceira em Moscou, terra de Borís, que nunca a deixou.
Entre os dois russos, a admiração vinha de algum tempo: “Que artista tão diabolicamente grande és, Marina”, escrevera ele em 25 de março daquele ano. E continuava: “Te amo com tanta força, com tanta plenitude, que me converto em objeto desse sentimento”.
Mas tamanha devoção ainda lhe parecia insuficiente. Como que movido por um desejo de ampliar o amor de que era tomado, quis que Rilke viesse se somar aos dois. Tratou-se, portanto, de um convite amorosamente planejado, que resultou em incandescente troca de cartas entre os três, publicada na Espanha sob o título de Cartas del verano de 1926, a partir da qual escrevo. Susan Sontag, que prefacia a edição americana, diz, com muita propriedade, que se trata do retrato de “um sagrado delírio de arte”.
As fronteiras físicas que separavam os três poetas nem de longe abrandavam o sentimento avassalador que os ligava. E não se pense que tanto amor excluiu incompreensões, ofensas e ressentimentos. Arrojada desde a primeira carta que escreveu a Rilke, Tsivietáieva não deixou por menos: “Você, poesia encarnada, deve saber que seu nome, em si, é um poema”.
Se a emoção promove o clímax da correspondência, as considerações sobre o conceito de poesia a pontuam de momentos notáveis, permitindo, ao mesmo tempo, que o “Poema do fim” atue como leitmotiv legitimador dessa comunicação triangular, cujo tom alto é sempre dado por Tsivietáieva. Em carta a Rilke de 12 de maio, ela ousa a este ponto: “Deus. Somente tu disseste algo novo a Deus”. É ainda nessa carta que ela descreve a experiência de ler os versos do amigo:
Sabe o que me ocorre quando leio teus poemas? À primeira vista (eu, que sou uma estranha), entendo tudo – depois – noite: nada – depois: Deus!, que claridade! – e quando quero pegá-lo (não no sentido alegórico, quase com as mãos), – tudo se confunde: só aparecem as linhas impressas. Relâmpago sobre relâmpago (relâmpago – noite – relâmpago), é o que me acontece quando te leio. O mesmo deve ocorrer quando escreves.
No entanto, ela não entenderia a excessiva discrição do interlocutor. Numa carta a Borís – ah, triângulo equilibrado – em que discorre sobre a concepção que tem do mar, compara-o ao novo amigo: “É frio, golpeia com violência, não se deixa ver, é hostil, está pleno de si – como Rilke! – (de si ou da divindade) – é hostil.”
É essa violência amorosa de Tsivietáieva que conduz ao ponto alto da correspondência. Que imprime à troca de cartas uma estrutura dramática semelhante à de uma peça de teatro cujo clímax se instala no terceiro ato. Furiosa com o que julgava indiferença de Rilke, no meio do ano, em 3 de junho, ela lhe escreve:
Meu amor por ti se desintegrou em dias e cartas, em horas e linhas. […] Assim é o amor – no tempo. Ingrato e autodestrutivo. Não amo nem respeito o amor. […] Então, Rainer, acabou. Não quero te conhecer. Não quero querer.
Nas palavras, mais poesia do que verdade. E o destinatário não demorou a perceber o amor que havia na fúria da remetente. Cinco dias depois, Tsivietáieva recebia dele nada menos que uma “Elegia” a ela dedicada. À parte, a justificativa: não estava preparado para aquele amor de que era alvo: “Fui chamado de uma maneira tão imprevista”, escrevia um Rilke soterrado pela comoção.
Não deve ter sido mesmo fácil para ele ser objeto do afeto exacerbante que o casal de amigos e pares lhe consagrava. Um sentimento que ignorava limites entre amizade e amor sensual, como se lerá em carta de agosto, quando Marina deixa de reservar para si o que o coração propagava. Nada de guardar o silêncio ensurdecedor de amar, como no verso de Louis Aragon: “Je suis plein du silence assourdissant d’aimer”. Não. Era com Rilke que ela queria dormir, prometendo-lhe uma noite casta nesta tocante declaração de amor:
Nunca te espero, sempre te reencontro. […] Rainer, quero ver-te, e o quero também por essa nova Marina que pode realizar-se unicamente contigo, em ti. – Não te aborreças comigo, trata-se de mim, quero dormir contigo – conciliar o sono e dormir. […] Sinceramente – dormir. E nada mais. Não, algo mais: fundir minha cabeça a teu ombro esquerdo, meu braço – em torno do teu ombro direito – e nada mais. Não, algo mais: mesmo no sono mais profundo, saber que és tu. E ainda mais: escutar as batidas do seu coração. E beijá-lo.
A partir dessa carta, Rilke silenciou. Nunca se encontrariam. Circunstâncias diversas impediram que Pasternak visitasse Marina em Paris, como planejava, no auge da paixão. O sonho intelectual dos dois de visitarem Rilke igualmente malogrou. Mas o que Cartas del verano 1926 prova é que a ausência do tête-à-tête naquele ano não impediu que Borís amasse Marina, que amava Rilke, que não amava ninguém.
Longe de serem os únicos a protagonizar uma paixão epistolar, foram precedidos, entre muitos outros, por Louise Michel, que enviava estas palavras a Victor Hugo, antes de se reunirem: “Que importa a distância entre nós, minha alma é um reflexo da sua e eu deixo que meu pensamento corra sem me inquietar”.
Semelhante foi a relação entre Kafka e Milena, apaixonados muito antes de se verem. Assim como os ingleses Elizabeth e Robert Browning, que viveram de cartas e bilhetes durante três meses, durante os quais ela escreveu dos mais belos sonetos de amor, os Sonnets from the Portuguese. Contei em post anterior que nem mesmo quando Robert a visitou pela primeira vez desconfiou do que a anfitriã vinha escrevendo, em segredo. Diferentemente do caso de Kafka e Milena, cuja correspondência começou a rarear (lembremos de Tsivietáieva: “Assim é o amor – no tempo. Ingrato e autodestrutivo”), os Browning tiveram um belíssimo encontro por toda a vida.
A lista de amantes seria enorme e não se encerra no século passado, ou no anterior. Ninguém se espante de saber que no século 21 do Skype, do Face Time e de tantas outras formas de comunicação ao vivo, a velha carta ou o velho telefone fixo continuam a dar conta do recado. A razão? Se há, é Tsivietáieva quem explica: “O amor vive de exceções, de separações, de exclusividades. O amor vive de palavras e morre de ações”.
Vive, e pode mesmo se nutrir de palavras: escritas, ou faladas. Não convém subestimar a força de um vigoroso estilo epistolar ou de uma bela voz. Tampouco se deve ignorar o que uma e outra forma podem revelar da natureza do interlocutor. O enigma se encarrega do resto.
Bem definiu Dostoiévski, nas Memórias do subsolo: “O amor é um mistério de Deus”, deixando aí implícita, como parte do mistério, a ideia de começo, mas também a de fim. O sentimento, que nasce de maneira incompreensível, regido pela esperança, pode terminar patrocinado pela crueldade. Finda para um, sem que o outro se dê conta. Ou queira se dar conta. Melhor seria se, no final, houvesse a coincidência tantas vezes mágica do início, quando a sintonia no primeiro contato deixa os dois sem saber quem se apaixonou primeiro. Não costuma ser assim no final.
Nesse ponto, não faz mal pular de Dostoiévski para Paulo Mendes Campos, que, sem a glória do russo, exprimiu como poucos a segunda metade do mistério:
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; […] e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e eles se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; […] de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
Rilke, como já se disse aqui, morreu no mesmo ano de 1926, quatro meses depois de ter escrito a elegia para Tsivietáieva. Ela, morta em 1941, jamais pôde se recuperar inteiramente da perda. Encontrou Pasternak rapidamente em Paris, em 1931, quando o coração já esfriara, mas não viveu para saber que ele seria premiado com o Nobel de 1958, ainda que, por questões internas de seu país, não pôde recebê-lo. Pasternak levou essa frustração com a morte, em 1960.