Buenos Aires foi a primeira cidade em que Augusto Boal viveu após ter sido preso e torturado no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1971. Na época, já reconhecido dentro e fora do Brasil por seu trabalho no Teatro de Arena, havia recebido, antes da prisão, convite para participar do Festival de Nancy, na França, onde apresentaria o espetáculo Arena conta Bolívar.

Teria viajado com o elenco se uma noite, acabado o ensaio, não tivesse sido abordado por três homens armados que saltaram de um fusca e o forçaram a entrar no carro. Estava preso. Meses depois, antes da sentença final do julgamento, o juiz concedeu-lhe o direito de viajar para juntar-se ao grupo, que, naquela altura, já estava na cidade francesa.

Obrigado a assinar um documento em que prometia voltar ao Brasil quando o festival terminasse, e, ao mesmo tempo, aconselhado pelo funcionário que recolhia sua assinatura a nunca mais pôr os pés no país, Boal não teve dúvida: “Foi o único conselho da ditadura que segui à risca: só voltei em dezembro de 1979, meses depois da anistia”, conta na autobiografia Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas.

Começava assim um período de quinze anos de exílio – terminaria em 1986 –, durante o qual as cartas minimizavam as saudades e o mantinham ligado ao Brasil. Boal chegou até mesmo a fazer amizade com um funcionário dos Correios que o ajudava a pôr selos nos envelopes empilhados diariamente, com rigor quase profissional. Dentro deles, as cartas podiam ser ilustradas com desenhos ou adquirir o formato de mapas, como a que enviou, de Buenos Aires, à mãe, Albertina: “Mamãe, esta não é carta: é só o mapa da Quinta […] onde eu escrevi a Tempestade. Dá pra ter uma ideia? Um beijo, Augusto”.

Escrita provavelmente em 1976, ano em que Boal adaptou A tempestade, de William Shakespeare[1], e Lisístrata, de Aristófanes – dando à segunda peça inicialmente o título de Lisa, a mulher libertadora, e depois Mulheres de Atenas –, a carta-mapa apresenta a planta do sítio pertencente aos sogros e frequentado por Boal, sua mulher, a argentina Cecilia Thumim Boal, e o filho dela, Fabian.

Nas mãos do criador do Teatro do Oprimido, o local ganha contornos divertidos: há o “pinheiro” e o “pinheiro enorme”; revelam-se o tamanho da piscina e a marca do carro que passa (“Citroen”); os membros da família são retratados em seus afazeres – sentados à mesa, Boal escreve e Cecilia cose um vestido; lá fora, Fabian anda de bicicleta. Em letras garrafais, o desenho informa a nova especialidade do remetente: “Eu fiquei especialista em churrasco”.

A carta é das poucas que não mencionam o andamento do pedido de renovação do passaporte, que tramitava na Polícia Federal do Brasil desde 1973. O assunto rendeu extensa correspondência com o crítico português Carlos Porto, que o convidou, no ano seguinte, para uma temporada lusitana após a Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974.

O movimento português que pôs fim à ditadura salazarista coincidiu com o início do processo que levaria ao golpe de Estado na Argentina, em 1976. O aumento da militarização e da repressão nesse país fizeram com que Boal quisesse partir, não importava para onde, desde que tivesse garantias de vida e trabalho. Fugia da segunda ditadura.

O governo de Portugal comprometia-se com passagem e havia promessa de contrato, mas faltava o passaporte, que estava vencido. A solicitação nunca recebeu uma recusa formal, mas se estendeu por cerca de dois anos e a autorização só foi concedida quando o advogado e amigo Idival Pivetta entrou na Justiça com um mandado de segurança contra o Ministério de Relações Exteriores do Brasil. Em carta de 25 de março de 1976, Boal conta à mãe: “Meu advogado me escreveu de São Paulo; parece que o assunto do passaporte vai ser julgado pelo tribunal em pleno [plenário] durante a próxima semana, se não antes. Vamos ver”.

Bem-sucedida, ao final de alguns meses, a conquista garantiu não só o passaporte de Boal como o de mais de trezentos brasileiros exilados.

Com o documento em mãos, Boal, Cecilia, Fabian e Julian, este nascido na Argentina, viajaram para Portugal, onde passaram dois anos até a mudança para França, último país onde viveram antes de voltar ao Brasil. Mas a correspondência com a mãe havia se encerrado em 1979, pelo menos quinze dias antes do retorno temporário após a anistia: “Recebi sua última carta no dia em que, pelo telefone, veio a notícia da morte: estava me esperando, depois de tanto exílio”.

Parte dessa correspondência e outras podem ser vistas na exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – cartas do exílio, em cartaz no SESC Vila Mariana, em São Paulo, de 16 de março a 25 de junho.

[1] N.S.: A adaptação está em cartaz com a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. A premiada montagem Caliban – A Tempestade de Augusto Boal circulará pelo Brasil em 2017.