“A moça chamada Emma Bovary nunca existiu: o livro Madame Bovary existirá para todo o sempre. Um livro tem vida mais longa que uma moça” – escreveu Vladimir Nabokov em ensaio sobre a obra-prima de Flaubert, reunido em Lições de literatura.

Talvez seja esse o clássico da literatura universal cujo processo de elaboração mais se conhece, o que se deve à prodigiosa vocação epistolar de seu autor. Flaubert escreveu milhares de cartas a seus pares, a amigos, a algumas mulheres que amou, e não poucas vezes descreveu o sofrimento por que passava durante a criação de seu romance mais prestigiado.

Essa correspondência, publicada em francês, em 13 volumes, revela muitos dos momentos cruciais do romancista. E não foram tantos aqueles em que ele se mostrou satisfeito com a qualidade de expressão enquanto escrevia. Na maioria das vezes, a busca pela palavra adequada, pela frase perfeita, pelo parágrafo absoluto o consumia de tal modo que, ao final de um dia de trabalho, sentia-se devastado, não só do ponto de vista físico como psicológico. Em carta à sua amante, Louise Colet, de 1852, ele escreve: “Uma frase realmente boa em prosa deveria ser como um bom verso na poesia, alguma coisa que você não pode mudar, e igualmente rítmico e sonoro”.

Ler essa carta basta para entender o porquê de tanta angústia ao longo do processo criativo: Flaubert buscava a concisão poética na sua forma irredutível e inescapável. Mas não era poeta. Quis adotar, em parte, a técnica da poesia nesse romance dividido em três partes que se distribuem em 35 capítulos, cada um com dez páginas. E conseguiu. Sua correspondência mostra a que preço.

Como prodigioso narrador, não foi só na ficção que fez pungir a alma do leitor. Suas cartas a Colet, para ficar em apenas um de seus vários interlocutores, testemunham o drama pessoal do criador, ao qual se dedicou com consciência artística absoluta. Drama bem-sucedido, contrário àquele de sua célebre personagem, Emma Bovary, que, fatalmente endividada, se suicida ao final de oito anos de casamento a que não faltaram dois casos extraconjugais.

Flaubert começou a trabalhar em Madame Bovary em setembro de 1851 e terminou-o em abril de 1856. No primeiro ano, escreveu apenas 89 páginas, confidencia ainda a Colet. Àquela altura, precisava descrever a cena da hospedaria, quando os protagonistas Emma e Charles Bovary chegam a primeira vez à cidade de Yonville. Uma única cena, e o romancista prevê não menos que três meses de trabalho para construí-la:

Que transtorno é minha Bovary. […] Pelo jeito, essa cena na hospedaria pode me tomar três meses. Às vezes fico à beira das lágrimas, tamanha minha impotência. Mas prefiro que meu cérebro exploda a eliminar essa cena. Tenho que fazer participar simultaneamente da conversa cinco a seis pessoas (que falam), várias outras que são mencionadas, toda a região, descrições de pessoas e coisas – e, em meio a isso tudo, preciso mostrar um cavalheiro e uma dama que começam a se apaixonar porque têm gostos em comum. Se eu ainda tivesse todo o espaço do mundo! Mas o fato é que a cena deve ser rápida sem ser seca, ampla sem ser descosida.

O tormento do criador que sabe com clareza o que quer atingir, e sofre ao longo do caminho de execução de seu plano, está exposto na carta a Colet de 16 de janeiro de 1952:

[…] O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.

De nada adiantava a intimidade que Flaubert ia ganhando com o romance. Seu sofrimento não se abrandava. O esforço de construção de cada frase, que ele queria irretocável, estendeu-se durante todo o processo de escrita. Perto de começar a segunda e penúltima parte de Madame Bovary, que – insistia –, devia ter pouca ação, chegou a dedicar cinco dias à redação de uma única página: “Mas sustento que as imagens constituem a ação” – escrevia a Colet em 15 de janeiro de 1853.

“Semana ruim, o trabalho não andou”, queixava-se ele, antes de descrever a cena em que Emma Bovary vai a um baile e, mais que encantada, se arrepia ao sentir o frio do champanhe na boca. Momento de descoberta de um prazer que anunciaria muitos outros.

É evidente que não se precisa ler as cartas de Flaubert para sentir a grandeza desse seu romance. Emma se arrepia com o champanhe. Bom motivo. E arrepia-se o leitor a cada página, maravilhado com a expressão artística. Quanto tempo – penso eu – terá o escritor dedicado ao pequeníssimo parágrafo em que, pouco antes da entrada do casal no baile, Charles Bovary quer dar um beijinho nas costas da mulher. Ela recusa veementemente. Emma não podia perder um segundo. Precisava atender o chamado da vida profana que começava naquela noite, no salão, onde dançaria, embriagada pelo champanhe e pela música. Este é o parágrafo, na tradução de Mario Laranjeira: “Ouviu-se um ritornelo ao violino e os sons de uma trompa. Ela desceu a escada, segurando-se para não correr”.

Só isso: a escolha dos instrumentos, dos verbos perfeitos, e o autor anunciou a disparada de Emma Bovary em busca do prazer na vida.

Já se viu aqui que são penosos os momentos ao longo da construção do romance. Temperados com raros, mas às vezes intensos, instantes de alegria, como este:

Na última quarta-feira, eu fui obrigado a me levantar para apanhar o meu lenço de bolso; é que as lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava deliciosamente, da emoção de minha ideia e da frase que a revelava e da satisfação de tê-la encontrado.