Para quem tem memória, nostalgia é palavra perigosa. Não que saudosismo seja crime. No Rio de Janeiro, as lamúrias são infinitas. Triste é assistir ao telejornal da hora do almoço e se descobrir morador de um balneário infernal. Triste é não ter vivido a era da Bossa Nova, quando ser carioca era tendência de comportamento. Talvez a nostalgia não seja mais que um simples exercício de imaginação. Matéria-prima não falta. Com um olhar mineiro, cartas e crônicas dos escritores Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos dão notícias do Rio perdido no tempo. Seus acervos, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, são frestas que revelam a riqueza material e cultural já ostentada pela Guanabara.

As livrarias eram muitas. Em crônica do dia 4 de junho de 1989, publicada no jornal O Globo, Lara Resende já se mostrava saudoso de dois estabelecimentos dos anos 1950: Freitas Bastos e Civilização Brasileira, ambos na rua Sete de Setembro, no Centro. Para ele, era possível encontrar de tudo nas duas casas. “O professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade”.

Em “Livrarias & Nostalgia”, Lara Resende rememora o importante papel da José Olympio, primeiro na rua do Ouvidor, depois na avenida Nilo Peçanha, também no Centro. A casa sediava reuniões entre os integrantes dos happy few da literatura brasileira: Graciliano Ramos, José Lins do Rego e João Guimarães Rosa.

Na mesma década, era possível assistir à estreia de Nelson Rodrigues como ator, na peça Perdoa-me por me traíres, em que o dramaturgo encarnava o papel de Tio Raul. Em carta de 24 de outubro de 1957 a Lara Resende, o poeta Ferreira Gullar relembrou a peça, que conta a história de Glorinha, uma adolescente reprimida pelo casal de tios com quem vive.

Encenada pela primeira vez no Teatro Municipal, a peça insultou a moralidade do público e da crítica. Um vereador, presente em uma das noites, indignou-se com a obsessão rodrigueana pela infidelidade conjugal e ameaçou disparar tiros para o alto. Nos ensaios, uma das atrizes selecionadas para o elenco sofreu ao tentar contracenar com Rodrigues. “Durante os ensaios, sem saber fingir que bate, bateu com tanta violência na cara da atriz principal que a moça desistiu de ser a ‘sobrinha’ dele”, escreveu Gullar.

Dirigida por Glaucio Gil, a peça foi estrelada por Dália Palma, como Glorinha, em um elenco formado por vinte artistas, entre os quais constava Abdias do Nascimento (Doutor Jubileu de Almeida). É raro encontrar grandes produções teatrais na cidade. Além da falta de verbas, os dramaturgos enfrentam um problema ainda mais grave: a falta de plateia. A velocidade com que os teatros ficaram vazios espanta. Na década de 1990, ainda se encontravam peças de valor literário. Era o caso da encenação de A via crucis do corpo, livro de contos de Clarice Lispector, de 1974.

Lara Resende, em carta à escritora canadense Claire Varin do dia 8 de junho de 1990, reagiu à montagem que Rosamaria Murtinho estrelava, no papel de Clarice, no Teatro Vanucci, no Shopping da Gávea. “São cinquenta minutos de transe. O cenário é decoroso, música, etc. – tudo me pareceu visível e quem sabe pode até ter boa acolhida no Canadá e ailleurs, ao menos para o círculo de CLaddicts”, registrou.

No ano passado, a pandemia não acentuou apenas a crise dos teatros do shopping da Gávea. A livraria Timbre fechou as portas no fim de janeiro, e a Malasartes está por um fio. No Centro, a São José, livraria mais antiga da cidade, também encerrou as atividades.  Nem o Teatro Municipal vive um bom momento, ainda que seus problemas financeiros sejam históricos: o descaso dos governos é perene, e o meio cultural pouco se entusiasma com óperas e balé, manifestações artísticas condenadas pelos moralistas a um suposto “elitismo”.

É muito difícil ouvir um acorde de Richard Wagner no Rio de Janeiro. E, quando a pandemia for apenas memória, o carioca também penará para ter uma noite de boemia. Legado olímpico, os preços dos bares ficaram olímpicos. A desilusão inflacionária pós-Rio 2016 poderia ser tema de uma crônica de Paulo Mendes Campos, para quem a boemia era uma arte.

Na crônica “Um boêmio antigo”, publicada na revista Manchete, em 26 de dezembro de 1959, Mendes Campos escreve sobre Leonardo, um homem muito mais velho que já ia “apitando irrequieto pelos subúrbios da velhice”. “Foi ele quem me revelou o encanto das festas borocochôs, levando-me aos sábados a vesperais que reuniam as pessoas mais convencionais de todo este Rio de Janeiro”, diz o narrador. A trama se desenrola quando a dupla, por iniciativa de Leonardo, resolve ir a um boteco em Botafogo, ao lado do cemitério, onde o biriteiro encontrava uma marca de uísque já extinta.

Os referenciais dos boêmios soçobraram. A tradicional Casa Villarino fechou as portas em novembro passado. No verão de 1956, o jornalista Lúcio Rangel, áulico do estabelecimento, apresentou Tom Jobim a Vinicius de Moraes entre as mesas do bar. A foto na galeria acima mostra o jornalista de pé no Villarino ao lado de Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos.

Hoje, as linhas sinuosas do Calçadão de Copacabana apontam para lugar nenhum. Se o Rio foi engolido pela corrupção, o hedonismo dos moradores, materializado na contemplação bestializada das paisagens, mostra que natureza não garante cidade interessante. Nos jornais, sobram notícias, mas há poucas novidades. Talvez o comodismo seja um dos impedimentos para a exportação de novas bossas – e de novos personagens para crônicas. As luzes do hotel Marina estão apagadas.


Agradecimentos: Manoela Purcell Daudt D’Oliveira