Bordo do Bagé, 6 de outubro de 1926
Querida mãe,
Quando embarquei no Bagé corri ao comissário a ver se havia alguma carta para mim. Entretanto de casa nada encontrei, nada recebi; fiquei desapontado. Naturalmente não lhes passou pela mente aproveitar esse meio de dar-me notícias – suas, mamãe, de tudo e de todos. Agora só em Paris. Já mandei três cartas, uma da Bahia e duas de Recife; não sei se receberam. É triste escrever assim, quase sem esperança de uma resposta; é tudo tão incerto. É como um grito sem eco. Assim que chegar a Lisboa lançarei esta ao correio; vou escrever também de bordo ao papai e às meninas.
Os dias aqui são todos iguais. Quase ninguém, nenhuma animação e muita intriga. O dia de hoje foi mais movimentado; quando subi ao convés de manhã avistava-se longe — infinitamente longe, no horizonte — uma sombra, uma silhueta suave e esbatida: terra. Uma ilha. Estamos na altura de São Vicente, manhã clara, vento forte.
Abriguei-me a “meia-nau”, como eles chamam aqui, estirei-me sobre a cadeira, mergulhei num romance. Quase meio dia chamaram-me; era a senhora Moniz Aragão, senhora muito distinta: “Já viu como estamos perto?” Levantei-me entre atencioso e aborrecido. Fiquei encantado! Que deliciosa impressão, que surpresa. Tinha um quadro diante dos olhos. Era a ilha do Maio que se estirava comprida, esguia, espreguiçando-se sobre o horizonte.
É uma ilha curiosa. Nasce à flor d’água numa linha baixa, chata de terra que se prolonga como uma língua comprida, muito comprida, subindo devagar numa rampa suave, imperceptível quase. Quebra ligeiramente, desenha um cume. Depois desce um pouco. Ondula, mantém-se um momento indecisa e de novo sobe; sobe mais, sobe bastante até que, marcado e preciso, acentua-se um pico. Aí desce bruscamente, espalha-se numa planície verde claro, e termina numa praia amarela banhada de sol.
Lugar ermo, ilha deserta, nua, sem vegetação. Lisa, macia, aveludada. De um veludo verde sujo, gasto, pálido. O céu muito claro estava todo malhado de nuvens esbatidas, imprecisas, nuvens que se esgarçavam. E o mar muito crespo, de um azul muito escuro, todo malhado de sombras e de carneiros brancos de espuma.
Por fim avistamos uma última ilha, já era tarde, aproximava-se o crepúsculo. Era Boa Vista, passamos longe. Lembra a primeira, as mesmas elevações fortes, bruscas, ligadas entre si pelas mesmas baixadas extensas.
Alto ainda, nuvens escuras escondiam o Sol, e a luz por trás se derramava, tingindo a atmosfera de um amarelo suave, lavado, transparente. Sentia-se no ar o alvoroço comovido que precede os grandes acontecimentos. Tinha-se a impressão que as nuvens todas se arrumavam no céu, distribuíam-se no espaço para a cerimônia imponente e divina do ocaso. Tudo se doura. Desce aos poucos o Sol. E o ouro aos poucos sobre tudo se espalha.
Lucio Costa. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 35.