[Rio de Janeiro], 28 de maio de 2015

Querido Abu,

Agora já faz um mês desde que você se foi, aos 82. Sabe, estou com saudades.

Não que nos víssemos tão frequentemente assim, que já tenhamos trocado algumas palavras ou realmente nos conhecêssemos. Mas isso não importa. Seus programas de entrevista gravados e colocados no YouTube foram suficientes para passarmos muitas horas juntos, entre poemas, romances e teatro, como toda boa história de amor clássica. Desconfio que você desprezava narrativas desse tipo, como também menosprezava tudo que fosse estupidamente ordinário ou clichê, suas frases monumentais a deixar esse desapreço evidente. “A felicidade é uma ideia velha” era uma das minhas preferidas. Você sempre a dizia mostrando os dentes, em um leve risinho pornográfico, como quem violenta ilusões alheias pelo puro prazer de desvirginá-las. Eu gostava. Se soubesse com quanto lirismo eu costumava dourar nossa relação, me cuspiria na cara. Me pergunto, Abu, sobre quando pensou nessas frases e as disse pela primeira vez a alguém. Imagino de que modo as estreou, como em um espetáculo dirigido por você, com todos os espectadores prontos para serem despidos sob seu completo controle. Penso em como se coçava de tanta ansiedade por ver a reação dessas pessoas, em como deveria ter a saliva grossa debaixo da língua inquieta, em como seus olhos faiscavam diante da chance de reproduzir palavras ácidas e em como, ansioso, deveria apertar os dedos ao lançá-las no ar. Tamanha vontade de chocar deve tê-lo feito pronunciar sentenças, como a que citei, frente ao espelho, em voz alta e com pouca luz no rosto, só para ver como soavam em seu timbre apocalíptico.

Você deve ter esperado pelo melhor momento para dizê-las, não é, seu pilantra? Principalmente nas entrevistas de seu “Provocações”, que ia ao ar todas as terças-feiras com um novo entrevistado. Tenho certeza que ficou de tocaia, sem ao menos piscar, conduzindo as conversas, escolhendo os assuntos, sorrindo com ironia até estar convicto de que sua frase viria como o melhor golpe, ferindo de morte os bons moços, como no Shakespeare trágico que tanto idolatrava. Por dentro, certamente riu deliciosamente ao ver corpos no chão, cuspindo sangue pelas costas abertas por seu fiel punhal. Aposto que, depois de se cansar de rir, tirou um lenço do bolso e limpou a lâmina para deixá-la reluzente outra vez, pronta para ser usada nas próximas ocasiões com a mesma beleza da primeira, tô certo?

Te conheço, não precisa nem falar que foi assim. Eu mesmo fui vítima de um desses rituais e pude ver pelo canto dos meus olhos, enquanto sofria, seu rosto cheio de prazer mórbido. Entendi como você era ali e, pra não deixá-lo sozinho, ri junto, baixinho, conformado. Você deve ter mesmo sido bom no teatro.

Algo me diz que você ainda continua falando essas coisas terrivelmente pontudas por aí, esteja onde estiver. Não há como pensar em um Abu sem suas frases, nem em um Abu que não exista, e por isso a saudade. Aliás, a sua transitoriedade, a sua insignificância tremenda, coisas que sempre lembrava em outras sentenças retumbantes, eram de fazer pensar. Uma vez você disse algo mais ou menos assim (perdão se tiver algum erro, você me corrige na carta de resposta): “Não dou importância a nada. Posso ter meu nome em uma placa da tabacaria hoje. Um dia eu não vou mais estar aqui, a placa vai cair, a tabacaria vai cair, vai cair tudo”.

Esse “vai cair tudo” me incomodou, o sangue escorrendo de um corte médio na minha panturrilha esquerda, você a rir escondido da ferida aberta (pode falar a verdade, vai). Pensei um pouco nisso, coisa que nunca tinha feito, e percebi que tinha razão, que tudo vai cair mesmo, inclusive eu e você, algum dia. “É verdade,” eu disse, com aquela clássica vergonha de quem não quer admitir que o outro é que está certo, “tudo vai cair. Tudo que é memória, também, vai cair. Que triste. E que bonito. Deve ser lindo ver tudo cair.” O sangue descia com mais força.

Vai ter um tempo em que ninguém mais se lembrará de você, de mim, ou da humanidade — palavra que você tanto odiava, já que “a barbárie tem a face humana”, né? Lembrei certo? Lá, os papéis e as palavras serão todos destruídos junto com qualquer coisa que já tenha possuído a qualidade de estar em pé antes de cair. Um dia, servidores de internet, sites e arquivos digitais cairão, coisa impensável nos dias de hoje. Penso no que será feito desta carta, em como vai simplesmente cair e ser ainda mais insignificante do que é agora, enquanto está de pé. Talvez você mesmo a rasgue quando a receber. Um destino muito digno, com toda a certeza.

Para o fim, Abu, deixei a parte que daria orgulho às professorinhas que indicavam seu programa no ensino médio (Você acredita que fazem isso? Pois é…). É a parte em que falo das coisas que você me apresentou e de como lhe sou grato por esse gesto, apesar de algumas delas serem horrendas. Farei isso colando dois trechos de um post que fiz em meu perfil do Facebook no dia 30 de abril, às 2h03 da manhã, dois dias depois de sua morte (Você é do tipo de velho que não curte redes sociais? Agora foda-se, já tá postado mesmo). Não colo o texto inteiro porque você me xingaria se lesse o restante, que é cheio de fascínio:

As menções rápidas a romancistas, poetas, e dramaturgos eram pontas esquecidas de caminhos desconhecidos, do tipo que temos curiosidade de seguir. Por causa delas, conheci Shakespeare e seus sapatos pontudos; topei com Pessoa na tabacaria; encontrei Thomas Mann em uma Veneza podre, afundada em beleza; conversei com Tchékhov me valendo de suas pausas sempre tchekhovianas; e avistei, pela primeira vez, Édipo, Medeia e as Bacantes, todos juntos em um lugar bem alto, cheio de importância (“Ai de mim! Ai, ai de mim! É preciso sempre um gemido grego pra começar esse programa!”).[1] São pessoas que não saem mais daqui.

[…][2]

Você conseguiu, Abu, me provocou.

Você acha piegas, não é? Mas é a verdade, não posso fazer nada. É por sua causa que esses caras tão aqui até hoje. Eles são legais, na maior parte do tempo.

Você se ressentia desse deslumbre, desse respeito e admiração enormes dedicados a pessoas como você pelos mais novos. “Onde estão esses jovens para dizer que somos umas bostas, todos com quase 80 anos? […][3] Se nos respeitarem muito, vou desprezá-los”, disse uma vez ao Estadão. Pois bem, Abu, pode me desprezar. Com toda sua força.

É justamente esse desprezo que amo e do qual tenho saudades.

Com amor,

Um admirador desprezível.

Victor Calcagno

Revista Poleiro: https://revistapoleiro.com.br/carta-de-amor-a-ant%C3%B4nio-abujamra-3e490bcecb92.

[1] N.A.: Forma com que Abu começava seus programas, todas as vezes.
[2] N.S.: Supressão na edição-base.
[3] N.S.: Supressão na edição-base.