Ao Governador de São Paulo,

Recebi um telegrama do Sr. Ministro Chefe de Cerimonial do Palácio do Governo, comunicando-me que me foi outorgada a Ordem do Ipiranga.

Desde que comecei minha carreira no Teatro, há trinta anos, poucos grandes nomes do palco foram homenageados pelos governos com ordens, medalhas, comendas etc… e sempre me indaguei se um dia chegaria a ter mérito suficiente para ser alvo de uma homenagem dessas. No meu íntimo, desejava muito que isso pudesse acontecer e acharia até justo que acontecesse não pela medalha, comenda ou ordem em si, mas porque seria um reconhecimento oficial ao benefício que o Teatro leva à mente e ao coração do público de nosso país; e também porque tenho consciência dos serviços que tenho prestado como ator e diretor teatral e, como diz o conhecido samba, “prefiro receber as flores e homenagens em vida”.

Acontece, Sr. Governador, que, após ler o telegrama, lembrei-me imediatamente do que tem sido a ação cultural do atual governo paulista. As comissões estaduais de arte e cultura estão desmanteladas, sem diretrizes, de mãos atadas pelo Secretário de Cultura. Promovem-se festas caríssimas e eventos demagógicos, sem qualquer resíduo artístico ou cultural útil. O monstruoso Teatro Sergio Cardoso, que é do estado, não pôde ser entregue a outras companhias teatrais brasileiras após a temporada de Rasga coração, porque foi cedido a um grupo empresarial argentino, por longa temporada, para repetir aqui o espetáculo comercial El diluvio que viene, sucesso de Buenos Aires.

Imagine o Sr. que a Comissão Estadual de Teatro teve, há alguns anos, como presidentes, Cacilda Becker, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, para só citar três pessoas que viam o Teatro como evento cultural, que conheciam o problema do Teatro e os problemas da classe teatral, que compreendiam que a função do governo é fornecer os meios para que a cultura fermente e se desenvolva normalmente, em profundidade, publicando livros necessários e especializados, que não podem ser publicados comercialmente, incentivando o bom amadorismo na capital e no interior como forma de desenvolvimento do teatro e da cultura, fornecendo diretores profissionais de teatro aos grupos do interior etc… etc…, elevando assim, harmoniosamente, o nível cultural do teatro em todo o estado. Esse trabalho foi honestamente continuado pelas várias comissões de teatro até o governo presente, quando tudo isso cessou de forma lamentável. A atual Cessão Estadual de Teatro existe apenas nominalmente, pois seus membros nada podem fazer. A secretaria de Cultura atua apenas como órgão político de promoção do governo.

Infelizmente, no governo atual, parece que todos os homens públicos confundem a grande ciência ou arte da Política com politicagem, o que é lamentável, o sr. não acha?

Se eu, no momento, aceitasse pertencer à Ordem do Ipiranga, estaria dando a impressão de que a classe teatral de São Paulo, por meu intermédio, aplaude e avaliza a atuação governamental no campo do Teatro e da Cultura. Como essa não é a expressão da verdade, sou obrigado a recusar a honraria que o seu governo dignou-se conceder-me.

Mas sou um otimista, Sr. governador, tão otimista que acredito poder viver o suficiente para um dia receber, orgulhoso e grato, de um governo democrático eleito pelo voto popular, uma homenagem semelhante.

De qualquer forma, obrigado pela intenção e desculpe-me pela sinceridade e o mau jeito.

Paulo Autran