Porto Seguro, 1º de abril de 1500

Senhor,

Posto que o capitão-mor desta vossa frota e os outros capitães escrevam a vossa alteza dando notícia do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar conta disso a vossa alteza da melhor maneira que eu puder, ainda que, para o bem contar e falar, o saiba fazer pior que todos.

Tome vossa alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e tenha certeza de que não porei aqui, seja para embelezar ou enfear, mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem e singradura do caminho não darei conta aqui a vossa alteza, porque não saberia fazê-lo e porque os pilotos é que devem ter esse encargo. Portanto, senhor, do que hei de falar começo. E digo que a partida de Belém, como vossa alteza sabe, foi na segunda-feira, 9 de março. […] seguimos nosso caminho, até que, na terça-feira das oitavas de Páscoa, 21 de abril, […] topamos com alguns sinais de terra: muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno.

No dia seguinte, quarta-feira, pela manhã, topamos com aves a que chamam fura-buxos.

Neste mesmo dia, à hora de vésperas,[1] avistamos terra! Primeiramente um grande monte, muito alto e redondo; e depois, outras serras mais baixas ao sul dele; e terra chã, com grandes arvoredos. Ao monte alto o capitão deu o nome de monte Pascoal e à terra deu o nome de Terra de Vera Cruz. […]

Na quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direção à terra, indo na frente os navios pequenos, por 17, 16, 15, 14, 13, 12, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E essa ancoragem aconteceu às dez horas, mais ou menos.

Dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.

Então lançamos fora os batéis[2] e esquifes;[3] e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde falaram entre si. E o capitão-mor enviou Nicolau Coelho num batel para ver aquele rio. Assim que ele começou a ir para lá, acudiram vários homens pela praia, em grupos de dois ou três, de maneira que, ao chegar ao batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.

Eram eles pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos e setas. Vinham todos rijamente sobre o batel. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

Mas ali não foi possível ouvi-los, por causa do grande barulho das ondas que quebravam na praia. Nicolau Coelho deu-lhes somente um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um colar grande de continhas brancas, miúdas […]. Creio que o capitão está enviando essas peças a vossa alteza. Depois disso, voltamos às naus, por ser já tarde e por não ser possível falar com eles, por causa do mar.

À noite, houve tanto vento sueste, acompanhado de chuvas, que deslocou as naus, especialmente a capitânia.

Na sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncora e fazer velas. […] Quando fizemos vela, estariam já na praia, sentados perto do rio, cerca de sessenta ou setenta homens, que se haviam juntado ali, pouco a pouco. […] E, velejando nós pela costa, acharam os navios pequenos, mais ou menos a dez léguas do lugar onde tínhamos levantado ferro, um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma entrada muito larga. Lá entraram e amainaram. […]

Afonso Lopes, nosso piloto, estava em um daqueles navios pequenos. Por ser homem vivo e destro para isso, por ordem do capitão meteu-se logo no esquife e foi sondar o porto. Tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa espécie de jangada. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; na praia andavam muitos com seus arcos e setas, mas não fizeram uso deles. Já de noite, Afonso Lopes trouxe-os ao capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é parda, um tanto avermelhada, com bons rostos e bons narizes, benfeitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas, e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam o lábio de baixo furado e metido nele seus ossos de verdade, brancos e do comprimento duma mão travessa,[4] da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do lábio, e a parte que lhes fica entre o lábio e os dentes é feita como uma torre do jogo de xadrez, estando ali encaixada de tal maneira que não os machuca nem os atrapalha no falar, comer ou beber.

Os seus cabelos são lisos. E andavam tosquiados, de tosquia alta, e rapados até por cima das orelhas. Um deles trazia, na parte de trás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, de mais ou menos dois palmos de comprimento, muito espessa e cerrada, que lhe cobria a nuca e as orelhas. E era grudada aos cabelos, pena a pena, com algo como cera (mas não o era), de modo que a cabeleira ficava bem redonda e compacta por igual, sem necessidade de mais lavagem para levantá-la.

Quando eles vieram, o capitão estava sentado em uma cadeira, bem-vestido, com um colar de ouro muito grande no pescoço, e tendo aos pés um grande tapete como estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Gomes, e nós que nesta nau vamos com ele, ficamos sentados no tapete. Acenderam-se tochas. Eles entraram. Mas não fizeram nenhum gesto de cortesia, nem sinal de querer falar ao capitão ou a alguém. Um deles, porém, reparou no colar do capitão e começou a acenar para a terra e depois para o colar, como se nos quisesse dizer que na terra havia ouro. Olhou depois para um castiçal de prata e acenou do mesmo modo para a terra e novamente para o castiçal, como se nos dissesse que lá também havia prata.

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenavam para a terra, como quem diz que ali também havia papagaios. Mostraram-lhe um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela e não queriam tocá-la. Depois, espantados, eles a pegaram.

Deram-lhes comida: pão e peixe cozido, doces, bolos, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada disso e, se alguma coisa provavam, logo a cuspiam. Trouxeram-lhes vinho numa taça. Mal o puseram na boca; não gostaram. Trouxeram- lhes água numa caneca. Não beberam. Apenas bochechavam e logo a lançavam fora.

Um deles viu umas contas brancas de rosário; fez sinal que as queria, gostou muito delas e colocou-as no pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Nós assim interpretávamos os seus gestos, porque assim o desejávamos… Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isso não queríamos nós entender, porque não permitiríamos. Depois, devolveu as contas a quem lhe dera.

Para dormir, deitaram-se de costas no tapete, sem nenhuma preocupação de cobrir suas vergonhas, as quais não eram circuncidadas e tinham os pelos rapados. O capitão mandou pôr um travesseiro embaixo da cabeça de cada um deles. Aquele que trazia uma grande cabeleira esforçava-se para não desmanchá-la. Depois, pusemos um manto sobre eles. Eles aceitaram. Em seguida, aquietaram-se e dormiram. […]

Parece-me gente de tal inocência que, se nós os entendêssemos, e eles a nós, seriam logo cristãos, porque, segundo parece, não têm eles nenhuma crença.

E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de vossa alteza, hão de se tornar cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza Nosso Senhor que os traga, porque, sem dúvida, esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens. E creio que não foi sem causa o fato de Ele nos ter trazido até aqui.

Portanto, vossa alteza, que tanto deseja fazer crescer a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!

Eles não lavram, nem criam. Nem há aqui boi, vaca, cabra, ovelha, galinha ou qualquer outro animal que esteja acostumado a conviver com o homem. Não comem senão desse inhame, de que há muito aqui, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores produzem. E nós, com o trigo e os legumes que comemos, não somos tão rijos e nédios como eles. […]

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, saímos pela manhã em terra, com nossa bandeira. Fomos desembarcar rio acima, contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor colocar a cruz, para melhor ser vista. Ali o capitão assinalou o lugar onde deveria ser feita a cova para colocá-la.

Enquanto a cova estava sendo feita, ele, com todos nós, fomos pegar a cruz rio abaixo, onde ela estava. Dali a trouxemos, e os religiosos e sacerdotes iam na frente, cantando como se fosse uma procissão.

Estavam já aí alguns deles, uns setenta ou oitenta. E, quando nos viram assim chegar, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia, e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será cerca de dois tiros de besta de distância do rio. E andando por ali vieram bem uns 150 ou mais.

Plantada a cruz, com as armas e a divisa de vossa alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram um altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada pelos religiosos e sacerdotes. Ali na missa estiveram conosco cerca de cinquenta ou sessenta deles, que ficaram de joelhos, assim como nós.

E quando se chegou ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim até que se acabasse; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos, com as mãos levantadas e em tal maneira sossegados, que, certifico a vossa alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até o fim da comunhão, depois da qual comungaram os religiosos e sacerdotes e o capitão com alguns de nós.

Como o sol estava forte quando estávamos comungando, alguns deles levantaram-se, mas outros ali ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou 55, continuou ali com aqueles que ficaram. Enquanto assim estávamos, ele juntava os que tinham ficado e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; pelo menos, nós assim o interpretamos. […]

Esta terra, senhor, me parece que, da ponta que mais contra o sul vimos, até outra ponta que contra o norte vem, do que nós deste porto pudemos avistar, será tamanha que haverá nela bem vinte ou 25 léguas por costa. Tem, ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, umas vermelhas, outras brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia palma, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito extensa.

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, frios e temperados como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achamos como os de lá.

As águas são muitas, infindas. E em tal maneira é grandiosa que, querendo-se aproveitá-las, dar-se-á nela tudo por causa das águas que tem.

Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que vossa alteza nela deve lançar.

E que não houvesse mais que ter aqui esta pousada para a navegação até Calicute, isso bastaria. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que vossa alteza tanto deseja, a saber, o acrescentamento da nossa santa fé!

E desta maneira, senhor, dou aqui a vossa alteza conta do que nesta vossa terra vi. E perdão se me alonguei um pouco, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer me fez ser assim minucioso. […]

Beijo as mãos de vossa alteza.

Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Antologia da carta no Brasil: me escreva tão logo possa. Organização de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Moderna, 2005, pp. 27-34.

[1] N.E.: Ao cair da tarde (movimento em que Vésper/Vênus torna-se visível no céu, ao pôr do sol).
[2] N.E.: Pequeno barco a remo, para se chegar até a praia.
[3] N.E.: Pequeno barco a remo.
[4] N.E.: Medida correspondente à largura da palma da mão.