São Paulo, 25 de junho de 1882

Minha Gretele do coração,

Escrevo-lhe dentro de uma densa atmosfera de fumaça de pól­vora. Relanceie um olhar à data acima e compreenderá por quê.

Ontem, foi novamente o dia do Batista (já faz um ano que lhe escrevi de São Francisco!), e aqui na cidade nota-se ainda melhor o que isso representa no Brasil.

O santo já apareceu há alguns dias, pois todas as noites quei­mavam-se fogos e, mesmo à claridade do sol, estouravam os foguetes.

O brasileiro parece divertir-se ainda mais com os estrondos e o fuzilar da foguetaria do que com o seu aquático esporte carnava­lesco, pois os folguedos pirotécnicos são mantidos de contrabando durante o ano todo, reservando-se os prazeres aquáticos somente para os dias de carnaval.

No Rio de Janeiro, em lindas noites, éramos obrigadas a fugir do jardim para dentro de casa, porque a vizinhança brincava com fogos, pouco se importando o pirotécnico brasileiro em saber a di­reção em que solta seus foguetes nem em que cabeças irão cair as fagulhas de suas bombas, contanto que chispem, crepitem e es­tourem.

Nas bancas das negras, na cidade, veem-se expostos à venda du­rante todo o ano os fogos mais comuns e cada moleque (mulatinhos que correspondem aos nossos garotos de rua), possuidor de alguns réis, compra invariavelmente, junto com os seus apreciados doces e cigarrinhos de papel, alguns foguetinhos ou um cracker para alegrar o coração com seus estalos e fagulhas.

Na penúltima e última noite, não consegui fechar os olhos: todas as ruas, todos os pátios, todos os jardins da circunvizinhança crepitavam, estouravam, explodiam, estalavam e silvavam em tais proporções e com tamanha insistência que estou certa de conhecer agora a sensação exata que domina uma pessoa quando ela se encon­tra em meio de um cerrado tiroteio.

A cidade inteira está cheirando a pólvora, e meu dormitório, que é de novo uma alcova sem ventilação direta, acha-se tão impreg­nado de fumaça que durante muitas noites ainda São João não cor­rerá o risco de ser esquecido por mim.

Ontem era realmente um perigo sair-se à rua.

Esse esporte começou logo de manhã cedo, e não é preciso dizer que os estudantes foram os mais temíveis; eles sentem um especial prazer em aparentar um ar inofensivo quando vão passando, mas, de repente, ao cruzar com qualquer pessoa, principalmente se é um estrangeiro facilmente reconhecível, atiram-lhe uma dúzia de busca-pés, ou queimam-lhe junto ao nariz bastões com chuvas de es­trelinhas.

A última palavra nesse esporte pirotécnico eram antigamente as denominadas serpentes, que se queimavam coleando pelo chão; com prazer tão infantil quanto perverso, muita gente divertia-se em atirá-las contra os pés e as roupas de pessoas do sexo feminino. Essa brincadeira durou até o dia em que um cultor de musas ateou fogo, com excessiva perícia, ao vestido de chita de uma mulata, produzindo-lhe graves queimaduras.

Julgou-se então que já era tempo de tapar o poço, um pouco tarde demais, pois a criança já caíra lá dentro. Mas aqui no Brasil, seja lá como for, sempre devemos ser gratos por uma providência dessa espécie.

Você facilmente fará uma ideia, Grete, do estado de espírito em que se achavam os meus romanos, fora de si de tanta excitação; só me admiro de não terem incendiado a casa com todos os seus habitantes…

De tão evidente, nem seria preciso contar que o Gracchus cha­muscou os cabelos e o Plinius torrou um dedo. Até mesmo Lavínia destoou, ficando com o vestido todo furadinho por causa dos fogos.

Ontem, foi a grande noite da foguetaria, tendo-me o senhor Costa solene e especialmente convidado para vir ao andar superior de­pois do jantar, porque iam ser queimados “alguns fogos”…

Com certeza estava achando que ainda não era suficiente o que se tinha feito até então…

Por mais estranho que pareça, a polícia criou ânimo e resol­veu proibir que os fogos fossem queimados das janelas para as ruas, e o mais admirável é que essa imposição foi atendida!

Por isso, em minha ingenuidade europeia, julguei que o senhor Costa mandara preparar pelos pretos, no jardinzinho situado atrás da casa e que se pode ver da sala de jantar, um lindo fogo de arti­fício, com lágrimas de fogo, rodinhas faiscantes, repuxos de chispas coloridas, fogos de bengala, mais ou menos como entre nós se or­ganiza um espetáculo dessa ordem.

A presença de dez a doze convidados ainda mais me confirmou na minha crença, e cheia de entusiástica expectativa aproximei-me de uma das janelas, que estavam levantadas.

Mas… Grete; tenho pouca sorte com esportes de predileção dos brasileiros, porque… sssscht! − recebi como saudação, enquan­to recuava apavorada, as últimas fagulhas e uma vareta de foguete desgarrado, que um hábil glorificador deste tão bombardeado, as­sobiado e esfogueteado santo mandara em direção errada, direta­mente às nossas janelas.

Algumas senhoras e crianças que se haviam também aproxima­do pularam para trás, gritando e rindo como se aquelas coisas todas despertassem entre eles um jubiloso encantamento, de sorte que tive de sufocar, perplexa, minha indignação interior.

Estará certa essa manifestação de boa índole e seremos nós dis­ciplinados demais?

Começou então a nossa brincadeira também, que consistia em queimarmos nós mesmos os nossos fogos; aliás, isso parecia muito mais do agrado dos brasileiros, do que se postarem calmamente, ape­nas como espectadores, mostrando-se os meninos trepidantes de impaciência.

O senhor Costa mandara vir do Rio especialmente para essa noite uma quantidade incrível de fogos, que foram distribuídos por ele ge­nerosamente. Longos canudos, com chuvas de fogo e crackers ingleses, eram os mais procurados, e cada um recebia quantos desejasse.

As quatro janelas da sala estavam repletas de gente e de cada uma delas saíam três a quatro desses canudos, sustentados pelas mãos morenas cheias de anéis das senhoras ou pelos dedos nervosos daqueles molequinhos selvagens que, ainda bem não acabavam de queimar seus fogos, já os atiravam ao pátio para poder agarrar de­pressa um outro intacto de qualidade diversa.

Pouco a pouco, e apesar das janelas estarem abertas, a sala foi invadida pela intolerável fumaça de pólvora que em grande volume se desprendia dos tais canudos, sendo empurrada para o nosso lado pelo vento noturno.

A cena observada a sangue-frio apresentava um aspecto infini­tamente cômico: todas aquelas beldades, com vestidos de diversas cores, cobertas de joias de ouro e empunhando os canudos fumarentos, com o rosto virado e os olhos apertados…, divertiam-se na fumarada dos fogos; os meninos, excitados e barulhentos, com a cabeça quente, pulando na sala como loucos, atirando crackers pelas janelas uns após os outros sem que ninguém os percebesse senão pelo estrondo com que rebentavam no calçamento de pedras do pátio; juntando-se ao mais, a imperturbável seriedade do dono da casa distribuindo os fogos, tudo dentro de uma espessa e irres­pirável atmosfera de pólvora − confesso, isso representava para mim um divertimento ainda desconhecido.

Em uma hora, haviam-se esbanjado sessenta francos de merca­doria, todo o sobrado durante a noite e no dia seguinte empestara; dois dedos de estranhos e um dos históricos tinham sido queimados − e somente a porta dos fundos, as cordas de estender roupa e a cerca desengonçada tinham apreciado os fogos, imagino eu.

Plínio procurou alegar como pretexto a queimadura de sua mão esquerda para não escrever com a direita e ficou furioso por não conseguir convencer-me como se convencera a si próprio.

Ach! Ia! Grete − estes romanos são terríveis, mas desejo ser pa­ciente.

Mister Hall também acha que devo tentar aguentá-los.

Mas quanto ao Bormann,[1] Grete, como você está vendo, ele não tinha preparo para lidar com crianças brasileiras de educação republicana!

Então, de cabeça erguida e bem no seu lugar!

Sua velha

Ulla

Ina von Binzer. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 89-92.

[1] N.S.: Provavelmente trata-se de Albert Karl Ernst Bormann, pedagogo alemão.