S.l., 1º de janeiro de 1953
Tinhas meio palmo de altura quando ficaste órfão.
Teu pai era um dos homens mais feios do mundo; mas inteligente e culto, com uma conversa fascinante. E viajadíssimo.
Daí em diante tomei a tarefa de olhar por ti como se fosses meu filho.
E cresceste na nossa casa tão cheia de livros de teatro, de gravuras de teatro, sempre com gente de teatro à nossa mesa, ouvindo falar de teatro da manhã à noite.
Uma vez até te encontrei brincando com uma máscara muitas vezes centenária. Não podias compreender a raiva que tomou conta de mim ao te ver, de mãos pequeninas e morenas te divertindo com esse retalho de seda esburacada por olhos.
Sempre fiz o possível e o impossível para que não te interessasses pelas coisas que amo, forçado pelo ambiente em que crescias. É verdade que frequentemente te cobria de ameaças: “Corto-te a mesada”; “um dia perco a cabeça e acabo te dando umas chicotadas”; “mando-te quando menos esperares para o fim do mundo”. E tudo isso, por quê? Na faina de não te querer de maneira alguma metido nas minhas aventuras de sonho, desejando-te e a teu irmão uma vida mais prática e mais compensadora financeiramente, via-te misturado com gente da tua idade ou mais velha, sem apego a livros, não gostando de música nem de teatro, nem de coisa alguma que consola a chatice da vida.
Quando nosso amigo Leitão de Barros andava à procura de um Castro Alves adolescente, veio até nossa casa e te descobriu. Veio a sugestão do teu aproveitamento. Irritei-me com a ideia. Achei-a estapafúrdia. Levar-te para o cinema, rodeado da mais absurda publicidade, era perder-te, ainda mais quando eras quase um menino.
As propostas mais vantajosas me eram remoídas. “Se não o queres num papel, deixa-o conosco em outro”.
Fiz pé firme. De maneira alguma. Tinhas muito que crescer e estudar até andar com tua cara multiplicada em cartazes, jornais, revistas.
Contudo, na tua ausência no ginásio, fui muita vez ao teu quarto para ver e folhear os livros que lias, muitos de poemas melosos, açucarados; outros de romances de bons autores e uma quantidade enorme de volumes sobre incas e astecas, que sempre foram e são até hoje tua maior obsessão. Ainda não faz muito veio almoçar conosco o professor Enrique Buenaventura, da Colômbia. Fui esquecido na mesa no que o nosso convidado e tu misturavam com a comida nomes de imperadores, de monumentos pré-colombianos, citavam datas de escavações e falavam de roteiros que nem são meus conhecidos de vista ou leitura.
Tens hoje 21 anos. E já quiseste ser fabricante de perfumes, sargento especializado da Aeronáutica, jornalista, industrial, candidato ao Instituto Rio Branco, oficial da Marinha Mercante. Tua inquietação sempre me causou uma inquietação maior. Especialmente quando resolveste que teu destino era a terra e te meteste meses a fio na granja do tio José, participando da mesa e da vida dos peões, sozinho entre plantas, cavalos e cães. Depois de um tempão comprido, voltaste. Trazias, de volta, uma valise magra de roupas, duas perneiras do couro sujas de barro, alguns pacotes de livros especializados sobre apiários, aviários, plantações disto e daquilo. Houve, no nosso primeiro encontro, uma sugestão tua: “Posso trazer para o Rio meus dois cavalos?”. Levei um susto. Onde colocá-los? Teu irmão arriscou uma graça: – “A gente transforma o jardim em estábulo para agradar o fazendeiro falhado”. Percebi que tinham vontade de todas as manhãs montar teu cavalo e andar por aí, subindo e descendo o nosso morro de Santa Teresa, com a molecada surpresa te chamando de nomes.
Nessa época eu preparava a grande viagem do Teatro do Estudante ao Norte.[1] Tinhas decidido terminar o clássico, ingressar na Faculdade de Direito – Eu gostaria de ir também.
– Mas tu nunca representaste.
– Na sua frente sempre tive medo.
Soube então pelo irmão, pela mãe, pelas tias, pelas domésticas da casa, a Maria Serpa e dona Nina, pelo Pernambuco, o negro que nos dá dores de cabeça há 35 anos, que tuas imitações faziam sucesso na copa e entre os estudantes. “É engraçadíssimo como velho”.
Levei-te na equipe que só representaria para crianças. Foste um “Soldadinho” bonitão, comprido, articulando com falhas, de voz bastante enevoada, mas agradando a milhares de criancinhas.
Depois da nossa volta, como ainda insistisses na experiência, mandei que passasses a frequentar aulas e ensaios do Teatro do Estudante.
Soube que te submeteste a exercícios difíceis de pronúncia e voz, para corrigir uma e outra.
Ontem à noite, sentei-me na última fila do Duse[2] para assistir à tua estreia como ator em O urso, de Tchekhov. Verifiquei que tens todas as qualidades para ser um ator de verdade, caso o teatro te fascine como profissão. Verifiquei também que tuas incursões por tantos caminhos – desejo de ser aviador, comerciante, industrial, diplomata, fazendeiro – muito te ajudará na tua carreira, pois um ator é um homem carregando consigo mil almas. Tua gesticulação é ampla e sóbria. Tua voz – é verdade que até sofreste aulas com pequenas pedras na boca, impostas por dona Ester Leão? – avolumou-se: é agora límpida e emitida sem esforço. Falta-te ainda maior riqueza de inflexões. Dizes a tua parte, move-te com naturalidade, mas não chegaste àquela completa integração ao personagem, esquecido completamente de ti. Se queres continuar, tens muito que estudar. Disseste a um amigo que não me nego nunca a ajudar artistas moços, mas que não falaria nunca a teu respeito, e que o melhor prêmio para teus esforços seria abrir um dia o Correio da Manhã e encontrar teu pequeno retrato nestas colunas, como faço sempre com os que começam e o merecem.
Aqui tens, neste primeiro dia do ano, teu retrato e esta carta aberta. Nunca de fato te agradeci o gesto que tiveste – o de me considerando de fato teu pai usar meu sobrenome. Se continuas no teatro, todos que implicam comigo vão perseguir-te e vão exigir de ti mais que pedem aos outros da tua idade e da tua pouca experiência. Vejo que estás sorrindo. Muito bem. Se o teatro não te trouxer fortuna nem glória, não me acusarás de te haver influenciado, nem poderás dizer, nas tuas horas de desânimo, que devias andar por outros caminhos e que te conduzi a esta de renúncia, sofrimento, luta, de recompensa vaga e sempre insatisfatória. Este, caso seja o teu, dar-te-á como me tem dado, por tê-lo abraçado com amor e um entusiasmo que a idade não o diminui, a alegria de realizar o teu próprio destino.
Paschoal Carlos Magno. Crítica teatral e outras histórias. Rio de Janeiro: Funarte, 2006, pp. 203-204.
[1] N.S.: Em 1951, o Teatro do Estudante, criado por Paschoal, realizou uma turnê de dois meses e meio pelo Norte do país, apresentando gratuitamente, tanto em salas fechadas quanto em espaços abertos, um repertório de sete espetáculos.
[2] N.S.: O Teatro Duse, que abrigava o Teatro do Estudante e cedia espaço a outros grupos amadores, foi criado por Paschoal no andar térreo de sua casa em Santa Teresa, no Rio de Janeiro.