Rio [de Janeiro], 9 de fevereiro de 1983
Meu caro Paulo,
Sei que a carta de um espectador entusiasmado diante da altíssima qualidade do espetáculo Traições não lhe poderá servir de conforto, após a pouca receptividade do público ao texto do Harold Pinter.
Entretanto, em minha longa experiência como professor, ao enfrentar turmas de quarenta, cinquenta alunos, encontrava em cada uma apenas uma meia duziazinha de interessados. Acabava por dar aulas a essa meia dúzia, sentindo-me realizado quando a esses – e só a esses – conseguia transmitir o que estava ali para transmitir. Infelizmente, eu não estava lecionando futebol, nem samba no pé, nem um meio infalível de fazer treze pontos na loteca… Daí a indiferença e o desinteresse da maioria.
Por isso compreendi tão bem a sua perplexidade quando, após o espetáculo, você se dirigiu à plateia para saber por que o público recebeu de forma indiferente a encenação de Traições. Fiquei solidário, compreensivo e comovido com a sua perplexidade.
De todas as maneiras, o mal não é típico do Brasil. A deseducação, a desinformação, a indiferença estão em toda parte. Pinter ainda é aceito com reservas na própria Inglaterra… Isso sim, é uma forma de consolo…
Durante a premiação do famigerado “Oscar” do ano passado, o roteiro de Pinter de A mulher do tenente francês[1] perdeu para aquele monumento à pieguice geriátrica que é Um lago dourado![2] Meu primeiro impulso foi quebrar o televisor. Porém, o pobre televisor não tem culpa das burrices que canaliza. Além disso, é um eletrodoméstico muito caro para ser quebrado a cada manifestação de burrice que mostra. Quantos televisores eu teria de quebrar todas as noites???
As pessoas que responderam ao seu apelo naquela noite, tanto as que não gostaram, quanto as que gostaram da peça, demonstraram absoluta falta de entendimento. Uma debiloide respondeu que não gostou porque o ritmo é lento… Evidentemente, ela havia errado de endereço. Deveria ter ido assistir a um dos motéis paradiso[3] da vida… A que gostou, achou a peça “poética” e “nostálgica”. Poética? Nostálgica? Que traição! Poético é García Lorca. Nostálgico é Jules Renard. Pinter é contundente, real. Radiografa a alma humana em seus meandros mais recônditos e secretos. E faz isso com uma aisance,[4] com uma percuciência e uma clarividência que dói e incomoda (da mesma forma que doem e incomodam as radiografias que revelam males orgânicos incuráveis). A impermeabilidade do ser humano diante do “outro”, a inconsciência de ferir-se ferindo, está tudo ali, em cena, apresentado claramente. E aquele achado genial de inverter a cronologia torna a peça ainda mais verdadeira e desconfortável. Desconfortável, sim, Pinter é, pois quem gosta de se ver tão a nu em seus aspectos mais negativos?
O mal é que nossos “críticos”, subdesenvolvidos e indigentes, não sabem ensinar o público a ver teatro. Ao contrário, muito pretensiosos, dão a sua opiniãozinha pessoal, sempre muito superficial, e dão sua tarefa por cumprida. Ao invés de ajudar o público, cometem imperdoáveis “traições”. O trabalho do crítico – do autêntico – deveria ser o de orientar o espectador, através de critérios estéticos imponderáveis, mostrando quem é o autor de uma peça, qual a sua proposta e como essa proposta está sendo realizada cenicamente. O que os nossos críticos fazem, ao contrário, é um mal uso de poder, transmitindo juízos meramente pessoais, sem qualquer critério. O resultado? A desinformação e desorientação do público, que mistura tudo como num liquidificador: os joões bethencourts[5] da vida passam a ter o mesmo peso de um Harold Pinter. Ritmo? […]
Traições não é uma peça de adultério. É uma peça sobre o relacionamento humano. Quando eu traio alguém, nada vai crescer na testa desse alguém. Isso é um absurdo anatômico… Um mito criado pelo mau teatro francês, que criou a figura do cocu[6] e o transformou em arquétipo universal. Quando eu traio alguém, nasce – isso sim! – uma enorme culpa na minha cabeça, que irá destruir todos os meus relacionamentos futuros em todos os níveis. Quando Patricia enceta um affair com Casey, já está envenenada, culpada, entediada, pois sabe, de antemão, por sua experiência com George, que todos os relacionamentos desse tipo tendem a deteriorar-se em consequência da impermeabilidade do ser humano. É muito fácil ter um affair. Difícil é amar.
Karin Rodrigues, atriz cuja carreira venho acompanhando há tantos anos (não direi quantos, pois isso não seria lisonjeiro com ela – NEM FARIA BEM A MIM!!!) e que jamais saía das pontas, dos papéis episódicos e de coadjuvante (embora sempre desse “algo mais” a esses pequenos papéis), tem aqui a oportunidade que vinha merecendo há muito tempo. Sua entrada em cena, logo no início da peça, é de uma perfeição arrepiante. Ela consegue transmitir, de imediato e com absoluta economia de meios, amargura, vergonha, tédio e autopunição. Pela primeira vez, meu caro Paulo, você se deixa engolir. Ainda bem que por alguém que merece essa refeição. Karin rouba para si todo o espetáculo. Além disso, uma mulher lindíssima, gretagarbonianamente bela. E que sensibilidade, putz!
Aqui, uma confissão: um de meus grandes sonhos é poder produzir A mulher do mar, de Ibsen. Não só por ser um de meus teatrólogos favoritos, mas, principalmente, por ser dentre suas peças a de que mais gosto. É comum, quando estou entre amigos, brincar de fazer o casting para a minha produção. Pois bem: nunca consegui fazer casting ideal para Élida. Qual de nossas atrizes poderia conseguir todos aqueles matizes que Élida exige de uma atriz? Nenhuma. Até que vi Karin Rodrigues em Traições. Ali estava, em carne e osso, a minha Élida, tal como sempre a mentalizei. A cena final de A mulher do mar, com Karin Rodrigues, seria apoteoticamente ibseniana. […]
Enfim, meu caro Paulo, esta não é uma fan letter. Isso nunca fez o meu gênero, nem quando tinha idade para isso. É apenas uma carta de alguém que teve orgasmos de emoção ao ver Harold Pinter representado à perfeição por vocês três. Se lhe serve de consolo saber que, ao menos um espectador, recebeu a “mensagem” direitinho, então, considere-se consolado…
Decio Drummond
Arquivo Paulo Autran/ Acervo IMS
[1] N.S.: Filme de 1981 dirigido por Karel Reisz, adaptado da peça de Harold Pinter.
[2] N.S.: Filme de 1981 dirigido por Mark Rydell, adaptado da peça de Ernest Thompson.
[3] N.S.: Motel Paradiso é uma peça de Juca de Oliveira, escrita em 1980 e encenada pela primeira vez em 1982.
[4] N.S.: Facilidade, em francês.
[5] N.S.: João Estevão Weiner Bethencourt (1924 –2006), dramaturgo, diretor, ator e tradutor de teatro húngaro, mudou-se para o Brasil em 1933. Participou de mais de cinquenta peças, entre elas a primeira montagem de A gaiola das loucas, que traduziu.
[6] N.S.: Marido traído, em francês.