25 de junho de 1937
Minha gatinha, recebi hoje a tua carta. Ela chegou tão triste! Tão desencantada! Mas tão maravilhosa e querida, pela sua simplicidade em me dizer as coisas, que me deu uma emoção ao mesmo tempo satisfeita e melancólica. Não é possível que você não possa acreditar em nada e em ninguém. Ao menos em você, tem que acreditar. Poucas criaturas serão tão dignas de serem amadas quanto você, minha gatinha do meu coração. Ainda não se maculou nos teus sentimentos essa espontaneidade que é o melhor dom que a vida te deu. Conserva-a, e junta a ele um pouco mais de confiança nas tuas forças. Ai começarás a compreender como é injusta a tua permanente vigilância contra a esperança. Estado de guerra contra a serenidade do teu — do nosso — amor…
Agora, deixe falar um pouco de mim: esperei uma carta tua com enorme impaciência. Afinal chegou.
Não importa assim tanto que ela seja tristonha, desde que ela veio. Estou de novo falando de você, pois se só de você te queria falar!…
Mas é preciso contar com as coisas para você ficar a par. Cheguei e no dia seguinte acabou aquele estado… Agora, ontem, meu pai também está na rua, embora ainda dependendo de processo. Nos encontramos depois de quase dois anos de separação. Foi uma alegria em que só faltou você.
Começo a cuidar de umas questões urgentes. Estou trabalhando — nós, os vagabundos…— com mesquinho resultado, mas, em todo caso, dá para ir remediando esse período que é o começo de tempos melhores.
Minha peça será daqui a um mês, em São Paulo, e daqui a dois meses e meio, no Rio. Assim que isso acontecer, terei um impulso enorme para ir adiante.
Se fosse te contar tudo numa carta só, ela teria de seguir num vagão de carga especialmente fretado.
Por conseguinte, fica para as outras cartas. Ao menos havia de me reatar o consolo de te escrever, enquanto durar esse tempo mau que me separa da minha gatinha (a pena é horrível, vou buscar minha caneta).
Não, tu não tens razão, pensando que tudo foi um sonho, uma bela parola apenas. Foi desses sonhos que ficam, que deixam marca. Querida marca, essa de teus beijos, essa sombra de teus gestos, de teu sorriso, que sempre me parece tão dentro, tão perto de mim. Meu estepe, meu amor, aqui um deserto de amor e um Amazonas de homens e ideias, você está sempre aqui. Fica a saudade de tua presença. Estupenda saudade essa, que, ao menos, é alguma coisa tua, alguma coisa de ti nos meus braços vazios. A tua inteligência, tua maneira de ser, de andar, de dizer, de não dizer; teu corpo, tua voz, teu riso, e até – que vergonha — teu choro — são tudo o que eu recordo. Cada dia penso mais em você e a cada dia com mais necessidade do teu carinho, da tua doçura, meu amor.
Veja se você pode ir ao Rio.
Encontrei a Luci, no trem com a Haydée. E outro dia, na cidade, eu ia com meu irmão, ela passou de repente, deu boa noite e foi andando depressa. Ela que me desculpe, mas só prestei atenção em você, uma saudade que só então se tornou física, viva, urgente. Não adianta estar falando. Espero, querida, e confia em nós. Em ti, que és dona do mundo, pela sua mocidade invencível, em mim, que sou uma coisa tua, um amigo, um companheiro, um homem que precisa do teu amor.
E sou o mesmo que você conheceu, e muito mais ainda: eu não tenho pena de você. Para quê? Por que você é amada como deve ser?
Só te peço para compreenderes que a vida não é só duas pessoas se gostarem e nada mais fazer. É preciso ir adiante de mãos dadas, vamos?
Um beijo. Dois. Mil. Uma saudade sem fim. Carlos
Fonte: Carlos Lacerda: Cartas 1933-1976 Família, amigos, autores e livros, política. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2014.