Rio de Janeiro, 25 de março de 1988

Iglésias,

Estava querendo lhe escrever para pedir al­guns subsídios sobre o café em Minas Gerais, a come­çar pela tese do João Heraldo Lima. Cheguei a falar disto ao Hélio [Pellegrino] outro dia mesmo.

Aí acontece o que aconteceu. Vi o João no ve­lório e lhe pedi a tese. Ele ficou de mandar. Meu in­teresse obedece a uma curiosidade geral, com uma espe­cífica necessidade para uma história que estou quase escrevendo.

Você fez muito bem de mandar sua carta, que me confortou, claro. Você sabe como estou. Desatina­do, destroçado. Ainda sem acreditar. Pesadelo. É pos­sível que eu tenha sido, de todos, o amigo que mais viu – e via – o Hélio. Nossos encontros, com raras exceções, eram diários. Depois que estou com escritó­rio na Gávea, morando ele a um passo daqui, nos víamos todas as manhãs e nos revíamos à noite com frequência, quando ele vinha cansado de Copacabana. E nos fa­lávamos com uma assiduidade talvez sem paralelo. Até nem sei onde ainda buscávamos palavras, ou o que di­zer.

Tudo que você diz do Hélio é verdadeiro e faz dele um perfil veraz. Além da figura pública, do mi­litante, de todo um certo folclore, o Hélio tinha tam­bém muitos outros aspectos, entre os quais a gratuidade infantil, um senso de humor e um histrionismo in­comparáveis. Eu costumava dizer antigamente que os meus melhores números, como histrião, eram cópias do original, que era o Hélio. Tínhamos, depois de tan­tos anos, uma recíproca e instantânea compreensão, que se fazia quase sem palavras, ou com palavras de pas­se que vimos espontaneamente criando ao longo de tan­to tempo repartido a dois.

Um cidadão desconhecido me disse hoje na rua que não existe mais amizade assim. Hoje é só violên­cia – disse ele, depois de me dizer outras coisas que me trouxeram logo as lágrimas aos olhos. Escrevo este bilhete com dificuldade, porque ainda estou, e creio que estarei para sempre, muito atingido (ou “muito alcançado” como nos dizíamos de pilhéria). O riso se mistura à dor. Ao ver o Hélio morto, ainda com as cores da vida, ao lhe pegar as mãos flexíveis, ainda quentes, ao tocar-lhe a testa, tudo me parecia mais uma troça do Hélio, que mais de uma vez figurou a própria morte aqui mesmo onde estou escrevendo. E me dizia, meio pilheriando, coisas que nem posso recordar. “Você vai sentir falta física de mim” – me disse ele, já com pena do estado em que me encontro. E completou: “Fico até com pena de morrer por sua causa. Você vai no mínimo ficar mancando” – e ia por aí afora, num humor negro de inesgotável inventividade.

A gente não se acostuma com a morte, Chico. Este ano tenho dito várias vezes, sobretudo a partir da morte do Olavo,[1] que o raio tem caído muito perto de mim. Chego a pensar que estaria melhor se o Hélio estivesse lamentando a minha morte. Estou bloqueado. Não consigo dizer o que sinto, nem sei por ora fazer um “retrato”, ou buscar uma reminiscência, do Hélio. Nosso encontro foi fulminantemente fraternal a partir do primeiro minuto. E você sabe que brigávamos muito, com uma franqueza rude, às vezes a ponto de chamar a atenção dos passantes na rua (quando era na rua) ou de cometer alguns estragos em volta. Nunca, mas nunca, jamais mesmo, nos separamos um com mágoa do outro. E nunca deixamos de nos dizer brutalmente (talvez eu mais do que ele) o que pensávamos. Li todos os textos dele antes de serem publicados. O que me tocava nele era a flama, aquela coisa heliopelegrinesca que roçava o sublime, o ridículo, o comovente, e o engraçado etc. etc. etc.

Paro por aqui, Iglésias. Obrigado por ter me dirigido essa palavra tão lúcida, de quem sabia o que o Hélio valia e de quem sabe o que o Hélio era para mim. Estou mutilado. Tenho às vezes desejado que o meu tempo termine logo. E temo por mim, por esta sen­sibilidade estúpida, cretina, boçal, que não se usa. Mas vou sobreviver. Vou aguentar outros trancos. Vou voltar a dormir (pouco, mas vou). Ouço o Hélio me dizer a toda hora: “Aguenta a mão, Otto!”

Vou fazer o possível. Desculpe esta baboseira. E obrigado. Ainda há amigos. Há você, Chico.

Otto

Arquivo Francisco Iglésias / Acervo IMS.

Você pode ouvir a leitura da carta feita por Bruno Lara Resende no vídeo abaixo:

[1] N.S.: Otto Lara Resende foi o terceiro dos 14 filhos de Antônio e Maria Julieta Lara Resende. Nasceu logo após Gilberto e Olavo Oliveira Lara Resende, que morreu no dia 9 de novembro de 1987.