É preciso ater-se aos fatos: 2020 foi um ano péssimo. Sim, 2020. Dois patinhos na lagoa, dramaticamente separados por um zéro estonteante. Número redondo, bonitinho, mas ordinário. Deu tudo errado. E ainda está dando. Com a chegada do verão, instala-se um clima de fim do mundo no Rio de Janeiro. Um ambiente nostradâmico, ao modo de Eduardo Dussek, anuncia a abertura da temporada da pachequice: os sobreviventes dessa tragédia ainda terão de suportar as enfadonhas festividades de ano-bom. Há quem sugira amigo oculto por Zoom. Mais vale, portanto, passear pela tradicional retrospectiva do correio IMS, que traz as cartas e os artigos mais lidos durante o ano.

Em primeiro lugar, no campeonato das missivas mais acessadas, está uma carta de Machado de Assis a Joaquim Nabuco. Nela, o autor de Dom Casmurro (1899) revela-se desolado, após a morte, em 1904, de sua mulher, a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais. “Foi-se a melhor parte de minha vida, e aqui estou só no mundo”, escreve Machado.

Ocupa a vice-liderança outra epístola cujo tema central é a solidão – e não deve ser sem razão que vários leitores a tenham escolhido. Findo o trabalho de delegado junto à Unesco, Vinicius de Moraes, prestes a voltar ao Brasil, em 1964, transmite ao amigo Tom Jobim um sentimento de inquietude: “Deixei Paris para trás com a saudade de um ano de amor, e pela frente tenho o Brasil que é uma paixão permanente em minha vida de constante exilado”, afirma o poeta.

A terceira posição é consagrada à centenária Clarice Lispector, que, em carta ao ministro da Educação, Tarso Dutra, protesta, no ano de 1968, contra o conceito de estudantes “excedentes”, formulado durante o governo do general Costa e Silva. “Que estas páginas simbolizem uma passeata de protestos de rapazes e moças”, define Clarice.

Como o leitor deste egrégio site bem sabe, o nosso blog é alimentado, mensalmente, com críticas que tematizam a correspondência epistolar. O artigo mais lido, neste ano, é “A carta-poema de Jorge de Sena”, escrito pela professora e doutoranda em literatura brasileira pela UFRJ Lyza Brazil. A autora propõe uma reflexão sobre “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, um dos poemas mais conhecidos da coletânea de 1913 do poeta português. A missiva em versos foi escrita a partir da tela O 3 de maio em Madri ou Os fuzilamentos (1814), do pintor espanhol Francisco Goya.

Medalha de prata para “Notícias de amor”, texto escrito pela psicanalista e crítica literária Fabiane Secches. O artigo destaca algumas correspondências publicadas no livro Cartas extraordinárias: amor (Companhia das Letras, 2020), organizado por Shaun Usher. A obra, traduzida por Marian Delfini, traz histórias de diferentes naturezas: de John Steinbeck, prêmio Nobel de Literatura de 1962, à filósofa Simone de Beauvoir, passando por uma carta de Paulo Mendes Campos, que integra o acervo do IMS.

Por fim, “Um vírus do bem”, artigo de minha autoria, analisa a canção “A carta”, de Djavan. A faixa do álbum Bicho solto (1998) retira a palavra “vírus” do contexto ao qual a humanidade se habituou ao longo do ano. O compositor propõe um modo de vida particular, transmitido como um vírus e capaz de combinar otimismo e crítica social.

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Há razões para otimismo. A ciência nos permite contemplar uma luz no fim do túnel, embora qualquer afirmação pareça leviana. Os efeitos da pandemia serão sentidos por muito tempo, mas o ano que se avizinha terá muitas dificuldades para ser pior do que o atual. Espera-se, ao menos, que 2021 apresente um novo campo lexical. Nada de “ciclo”, “trajetória”, [complete como quiser]. Também esperamos desvendar expressões de significado ainda misterioso, como “ala ideológica do governo”. Deseja-se, enfim, um ano de palavras mais poéticas e inteligentes. Mascarados venceremos.