O enredo de Disque M para matar gravita em torno de uma carta. Carta que é a única sobrevivente de uma longa troca de correspondências transatlânticas entre dois amantes. A mulher, Margot Wendice (Grace Kelly) temendo que seu marido terminasse por descobrir seu envolvimento com Mark Halliday (Robert Cummings), procedeu a uma “destruição de provas”, poupando este único documento. Ela costumava carregar a carta sempre consigo como um amuleto proibido, pois continha, supomos, algo ao mesmo tempo adoravelmente intenso e perigosamente revelador.
Pois este objeto temerário acaba sendo roubado de sua bolsa; em seguida ela recebe uma outra correspondência: desta vez um bilhete anônimo, escrito em letras maiúsculas, que ordena o pagamento de uma certa quantia de dinheiro sob ameaça de tornar o conteúdo da carta público. Margot responde, e, recebe em retorno um segundo bilhete, com instruções.
Quando o filme se inicia, esta primeira parte da intriga já é fato dado: o “resgate” foi pago, mas a preciosa carta não foi devolvida. Tudo isso nos é apresentado num “preâmbulo”, protagonizado pelos dois envolvidos nesta correspondência tornada fantasmática e a cujo conteúdo nunca teremos acesso, nem mesmo por alusões indiretas. Apenas os dizeres dos bilhetes de chantagem nos são comunicados: Margot os mostra ao amante, que os lê em voz alta, guardando-os em seguida consigo, com o intuito de proceder a uma investigação.
Tem início então uma segunda intriga, que ocupará a duração do filme propriamente dito. O foco muda de Margot para o seu marido, Tony Wendice (Ray Milland), que rapidamente descobrimos ser o detentor da carta – e, portanto, o chantagista. Por meio de uma artimanha, ele consegue atrair um antigo colega, hoje um estranho, à sua residência, e lhe conta a história da traição da mulher, em detalhes, mostrando até mesmo o envelope que contém o famigerado escrito. Manipulando-o com astúcia, ele consegue fazer com que o sujeito o pegue do chão, imprimindo-lhe, desse modo, as impressões digitais. O que se segue é um enredo um tanto clássico: Tony o contrata para assassinar Margot, com a intenção de incriminá-lo pelo roubo da carta e pelos bilhetes de ameaça.
O mais perto que chegamos de “ver” a carta, que, não obstante, se encontra no centro da trama, são, alguns planos aproximados (nunca close ups), em que os personagens manipulam o envelope. Ora, é que essa carta é o típico MacGuffin hitchcockiano: um recurso narrativo que se manifesta sob a forma de um objeto de desejo, ou objetivo perseguido pelos personagens, mas que é, no fundo, desimportante para a narrativa do filme. Lançando os espectadores em uma pista ilusória, ele revela, por fim, sua gratuidade em relação ao verdadeiro interesse da intriga. Seu papel é lançar a ficção, colocando os personagens em movimento. Temos assim um caso, talvez único, de carta-MacGuffin: a correspondência que Margot define para Mark como “aquela que você sabe qual é”, e que não existe para o filme como conteúdo epistolar propriamente dito. Sua função na narrativa é revelar o caráter do marido frio e calculista, assim como fazer girar uma engrenagem de jogos psicológicos entre os detetives e o trio formado por Tony, Margot e o amante, Mark Halliday.
Passando de mão em mão, de uma bolsa a uma agenda, da agenda ao bolso do paletó do assassino de aluguel, o envelope que vemos é como tantos outros objetos no cinema de Hitchcock: uma insígnia visual destinada a capturar o olhar e revirar as aparências por meio de uma circulação desenfreada da dúvida e da suspeita. Eles fazem o mundo girar, apesar de sua insignificância, ou melhor, de sua ausência de significado. No caso de Disque M para matar, em que o objeto central é a carta fantasmática, tal fórmula é no mínimo irônica, já que a palavra, e sobretudo a palavra escrita em uma carta, tem no processo de significação da linguagem sua razão de ser.
As palavras da correspondência, seu caráter literário, são assim eludidas em favor do aspecto icônico do envelope. Nesse sentido, a carta reduzida a seu invólucro afirma-se, dentro do filme, como uma reverberação da chave do apartamento, item essencial para abrir a resolução do caso e que passa de um personagem a outro.
Para permitir que o assassino entre na casa, Tony pega a chave da mulher e esconde-a num lugar estratégico. Mas como Margot se defende de forma espetacular, matando o homem em legítima defesa, o plano de Tony vai por água abaixo e ele se vê obrigado a improvisar: coloca a carta no bolso do paletó do morto e recupera a chave para devolvê-la à bolsa da esposa, dissimulando a ação com belos gestos – análogos aos de Ingrid Bergman em Interlúdio (Notorious, 1946). Esse afastamento da palavra enquanto matéria de expressão e de interesse particular soa, apesar de tudo, bastante natural para um cineasta conhecido por seu poder de seduzir o olho e de comunicar o essencial visualmente. Assim, é interessante observar como a arte da escrita, a literatura, penetra o filme por um outro viés: através do personagem de Mark Halliday, que é escritor de romances policiais.
Autor da carta que não lemos nem ouvimos, ele intervém na enquete policial de forma praticamente metalinguística, “escrevendo” o próprio filme, ao sugerir a Tony contar uma mentira ao juiz para poupar a vida de Margot, condenada à morte por ter matado o homem que deveria tê-la assassinado. Na narrativa proposta, Tony deveria dizer que mandou matar a esposa e deu condições ao assassino de entrar na casa.
Essa história aparentemente inverossímil corresponde exatamente à verdade sobre o ocorrido e propulsiona a reviravolta final do enredo, em que Tony é desmascarado pelo detetive. No fim, podemos dizer que, por vias tortas, é definitivamente do talento literário de Mark, personagem que ocupa pouco a tela, o lugar de honra em Disque M para matar: por um lado, ele encanta e seduz (a carta), e por outro revela a verdade (a “ficção” policial).
Mais:
Cartas no cinema (1): sobre Metáfora ou a tristeza virada do avesso
Cartas no cinema (2): sobre A loja da esquina
Cartas no cinema (3): sobre Nunca te vi, sempre te amei
Cartas no cinema (4): sobre O prédio dos chilenos
Cartas no cinema (6): sobre A carta