A Carta (La Lettre), do português Manoel de Oliveira, é uma adaptação para os dias atuais de um célebre romance de Madame de La Fayette, A Princesa de Clèves (La Princesse de Clèves), publicado pela primeira vez em 1678, de forma anônima. Assumindo plenamente o anacronismo de seu gesto de adaptação, Manoel de Oliveira o introduz na forma do filme, fazendo avançar a história por meio de intertítulos, e na própria narrativa, transformando a princesa em um personagem em desacordo com o seu tempo.
Pertencente a uma aristocracia contemporânea, ela é orgulhosamente educada “à moda antiga” pela mãe, e segue à risca uma etiqueta de tempos passados, em todos os ritos e protocolos. Além disso, a jovem, silenciosa e reservada, opera segundo uma ética de inspiração jansenista, de acordo com a qual a nobreza de espírito reside na renúncia à liberdade humana para alcançar a salvação ou atingir a graça. Ao rigor de conduta corresponde então um rigor espiritual, que será confrontado ao mais rebelde dos sentimentos: a paixão. Mademoiselle de Chartres (Chiara Mastroianni) casa-se com um “bom pretendente”, Monsieur de Clèves (Antoine Chappey) tornando-se a devotada esposa Madame de Clèves; mas apaixona-se de forma tão súbita quanto impensável por um cantor de rock português, Pedro Abrunhosa, inclinação à qual ela se empenhará em não ceder.
A missiva à qual se refere o título permanece ao longo de todo o filme como uma interrogação, pois sua aparição só se dá na última cena, como desfecho da narrativa. Porém, como em toda obra de Manoel de Oliveira, a palavra ocupa um lugar privilegiado no filme e contribui, junto com os longos e demorados olhares dos personagens, frequentemente direcionados ao vazio, para estabelecer um universo regido mais pelo espírito do que pelas ações. Assim, o silêncio que envolve o sentimento proibido – segredo inicialmente partilhado apenas com o espectador – entra em atrito com a prática da conversação moral, feita de discursos sobre os deveres e obrigações sociais. A arte do diálogo serve, pois, para afirmar, num primeiro momento, a inevitabilidade de omitir a paixão, mascarando-a com palavras sempre medidas e equilibradas. Porém, num segundo momento, quando a força do sentimento começa a balançar os alicerces de Madame de Clèves, ela sente a necessidade de abrir um outro espaço de fala, regido por outras regras: o da confissão.
Nesse momento, o exercício da palavra muda de registro. Madame de Clèves vai ao encontro de uma amiga religiosa (Leonor Silveira), personagem não-existente no romance de origem. No convento, o ritual da confissão é transfigurado em uma conversa entre amigas, na qual o diálogo se esgarça para abrigar longos monólogos. Neste processo, não se trata de assumir uma culpa na esperança da salvação, mas de expor o profundo impasse no qual se encontra a jovem dama: de um lado, a escolha de um amor extraconjugal recíproco (e inconfessável) por alguém com fama de bon-vivant, de outro, a permanência em um excelente casamento com um marido amoroso, além do imperativo de preservar a “honra”.
O sentimento, que ela julga ilícito, impossível de ser vivido configura um paradoxo: trata-se uma falha involuntária de virtude, que será combatida com uma demonstração desmesurada de virtude e retidão. E tal contrassenso parece ser mesmo obra de ironia do destino, na qual a busca por uma vida de acordo com altos desígnios espirituais termina por se chocar com os imperativos da vida sobre a terra.
E como se o desabafo à amiga não fosse suficiente, a explosão impensada de uma manifestação não-verbal, um “grito”, desencadeia a necessidade de uma segunda confissão. Assistindo ao noticiário na companhia do marido e de um casal de amigos próximos, Madame de Clèves tem um sobressalto ao escutar uma reportagem sobre um acidente de carro sofrido por Pedro Abrunhosa. Em um meio social extremamente codificado e regido pelas aparências, sua discreta expressão de espanto soa como uma exclamação fora de proporções e surpreende os presentes, denunciando um sentimento vivo.
Ela se verá, portanto, obrigada a confidenciar ao marido sua infidelidade espiritual, o que se dá em uma cena magistral passada num parque. E o destino demonstra ser mais uma vez caprichoso: Pedro Abrunhosa encontra-se no mesmo parque, em uma passagem paralela à do casal, separada por uma parede de arbustos. Ele escuta o relato de Madame de Clèves sem vê-la, e ela assume seus sentimentos ignorando a presença do amado, o que configura uma outra declinação do dispositivo da confissão religiosa.
Ademais, a conversa com o marido é interrompida por um imigrante faminto (Ricardo Trêpa) pedindo dinheiro para voltar para o seu país. Sua súbita aparição provoca um choque evidente entre o diálogo altamente espiritualizado do casal abastado e a realidade material de um desfavorecido. Entre os imperativos de uma alma que busca a elevação e os de um corpo que luta para sobreviver.
Monsieur de Clèves adoece de ciúmes após saber dos sentimentos da mulher por Abrunhosa, e vem a falecer. Madame de Clèves, viúva, acaba por descobrir que o cantor se instalou num apartamento em frente ao seu. Seguindo fielmente seus preceitos, ela busca formas de evitar o vizinho, e termina por desaparecer.
É quando, após um longo silêncio, a carta intervém. Enviada por Madame de Clèves à amiga religiosa, ela vem responder à sua ausência, configurando a derradeira confissão e uma espécie de epifania final. O escrito, lido pela religiosa em voz alta, comunica a determinação da remetente e não ceder à tentação e de perseguir um trabalho humanitário junto aos desfavorecidos na África. Esta carta é portanto a responsável por conferir-lhe enfim a aura santificada que havia pairado sobre ela desde o início. Suas palavras selam o embate que se desenha ao longo de todo o filme entre as injunções do espírito e as dores e prazeres da vida terrena, caracterizando um amor desgraçado, e por isso mesmo puro.
Nesse sentido, A Carta é bastante próximo de Amor de Perdição (1979), outro filme de Oliveira no qual a comunicação epistolar tem um papel fundamental. A austeridade do primeiro e o romantismo desenfreado do segundo têm em comum a sublimação da impossibilidade de satisfazer um amor através da arte da palavra feita encarnação do divino.
Mais:
Cartas no cinema (1): sobre Metáfora ou a tristeza virada do avesso
Cartas no cinema (2): sobre A loja da esquina
Cartas no cinema (3): sobre Nunca te vi, sempre te amei
Cartas no cinema (4): sobre O prédio dos chilenos
Cartas no cinema (5): sobre Disque M para matar