Cartas de Iwo Jima, de 2006, faz parte de um díptico um tanto particular. Realizado e lançado alguns meses depois de A conquista da honra (Flags of Our Fathers), consiste no “contracampo” deste. Neste projeto único na história do cinema, Clint Eastwood aborda a histórica batalha de Iwo Jima, ao fim da Segunda Guerra, na qual a ilha japonesa foi conquistada a duras penas pelos americanos. A conquista da honra filma o lado americano do conflito, e Cartas de Iwo Jima, o japonês.

No entanto, não se trata apenas de expor o ponto de vista de cada um sobre o conflito em si, mas de construir uma narrativa para cada campo, ou seja, duas narrativas complementares, cuja diferença de perspectiva visa a demonstrar, acima de tudo, que a guerra é uma realidade humana cruel e complexa, repleta de nuances, em relação à qual tudo deve ser relativizado, sobretudo crenças e valores.

Sendo Eastwood americano, logicamente a primeira instância do díptico é A conquista da honra, na qual encontramos os grandes temas de seu cinema: a desconstrução da figura do herói, o trauma psicológico da guerra, o lado sombrio por trás da imagem do “vencedor”, o processo de construção de mitos fundadores (da América) e a História como memória individual. Cartas de Iwo Jima vem, então, como um complemento necessariamente assimétrico, no qual o cineasta se esforçará para transpor seu olhar para um outro universo cultural.

O aspecto mais fascinante do diálogo entre essas duas obras – um filme totalmente americano e um filme quase genuinamente japonês –, talvez seja o contraste entre seus respectivos elementos propulsores. A conquista da honra parte de uma imagem, a célebre fotografia de Joe Rosenthal em que seis soldados americanos plantam uma bandeira estadunidense no alto do monte Suribachi, a parte mais elevada da ilha. A narrativa, baseada no livro escrito pelo filho de um dos soldados, a partir de depoimentos diversos, gira em torno dos três que sobrevivem para ver a publicação da fotografia, apenas alguns dias depois que foi tirada. Enviados de volta aos Estados Unidos, eles são recebidos como heróis e rodam o país para ajudar a angariar fundos para o esforço de guerra. O filme é, em resumo, a desconstrução de uma imagem icônica, sua desmistificação pela exploração da realidade humana e política por trás do clichê.

Cartas de Iwo Jima, por outro lado, parte da correspondência enviada e recebida pelos soldados japoneses, encontrada durante uma escavação arqueológica na ilha, em 2005. De certo modo, Eastwood trata a palavra como o reverso da imagem. Se a força e o efeito da imagem são imediatos, ela pode criar ilusões; a palavra, por sua vez, precisa ser conquistada, e o resultado pode ser revelador. Desenterrado, o conjunto de missivas traz à luz uma série de vozes narrativas em primeira pessoa, abrindo uma brecha para que o olhar estrangeiro penetre na intimidade do outro. Além de possibilitar essa entrada, as cartas oferecem também uma descentralização discursiva, deixando que, na medida do possível, os japoneses falem por si mesmos.

A narrativa é lançada com a voz do jovem soldado Saigo, em off, se dirigindo à sua companheira. Pouco tempo depois, também em off, ouvimos o general Kuribayashi, que, a caminho da ilha para comandar a batalha, se comunica com a esposa. Essas vozes, ecoando sobre a imagem dos personagens, soam primeiramente ao espectador como um fluxo de pensamentos internos. Apenas quando vemos o posto de correio improvisado para os soldados é que começamos a compreender que se trata de cartas, de palavras escritas. E à medida que mergulhamos no cotidiano dos militares na ilha, tais narrativas vão se tornando mais raras, aparecendo apenas como pontuações eventuais. Mas o fato de que a prática da comunicação pessoal à distância pela escrita seja uma constante, dizendo respeito a diversos personagens, estabelece não apenas a possibilidade de individuar os japoneses presentes neste “campo inimigo”, como atesta a existência de uma vivência emocional para cada um dos que, sob a ótica do oponente americano, compunha massa amorfa e representava ameaça.

Ao abrir a vida interior dos militares japoneses, as cartas também expandem o espaço-tempo do filme, que se dilata para abrigar flashbacks dos personagens, o que lhes confere ainda mais espessura humana. No caso do general Kuribayashi, essas memórias permitem estabelecer uma ponte com o campo adversário, pois o vemos nos Estados Unidos e interagindo com americanos. Autor de cartas ilustradas com desenhos, endereçadas sobretudo aos seus filhos, ele demonstra conhecer razoavelmente bem a cultura do inimigo – enquanto que em A conquista da honra o campo japonês é nitidamente ignorado.

Essa ideia de uma ponte entre os dois mundos, passível de ser construída por relações afetivas manifestas pela palavra – ou seja, pela correspondência – é reforçada quando o coronel Nishi, outro personagem com vivências e amizades em solo americano, instrui seus soldados a resgatar um adversário ferido e medicá-lo, para em seguida conversar com ele. Após este vir a falecer, o coronel descobre uma carta em seu bolso e a traduz para seus homens. É uma carta da mãe do soldado americano, cujas palavras abordam fatos simples do cotidiano e o desejo de ver o filho voltar são e salvo. Esta “carta de Iwo Jima”, que não pertence ao campo japonês, parece, assim, selar o projeto do filme: por trás das trincheiras, os homens de um lado e de outro são, para além da empreitada desumanizante da qual participam, apenas pessoas comuns, e, para enxergar essa realidade, basta abrir uma brecha. Ao ouvir as palavras da carta americana, os soldados japoneses claramente se identificam e passam a ver, eles também, aquele desconhecido como um semelhante.

É esta a força das cartas aqui: uma oportunidade de conexão emocional, de compreensão e conhecimento, um antídoto contra a desumanização do outro.

Mais:

Cartas no cinema (1): sobre Metáfora ou a tristeza virada do avesso
Cartas no cinema (2): sobre A loja da esquina
Cartas no cinema (3): sobre Nunca te vi, sempre te amei
Cartas no cinema (4): sobre O prédio dos chilenos
Cartas no cinema (5): sobre Disque M para matar
Cartas no cinema (6): sobre A carta