[Rio de Janeiro], 16 de fevereiro de 1972
Querida Lotta, se no assento etéreo onde você deve estar, memórias desta vida se consentem, se você vê as coisas cá debaixo, há de sentir uma grande alegria contemplando o seu Parque do Flamengo. Sim, o seu Parque, Lota. Que você inventou, criou, tirou daquele aterro bruto, acompanhando-o pedrinha por pedrinha, planta por planta, flor por flor. Todas as suas canseiras, as lutas, a tremenda energia despendida, sua vida revolucionada e posta inteiramente a serviço do Parque, aquele terrível calor do barracão, suas manhãs e suas tardes, os derradeiros anos de sua vida passados ali, entre a maquinaria e os viveiros, e os seus arquitetos, e as suas botânicas e secretárias, e os seus jardineiros e seus mestres de obra, todo o seu pessoal, que, como você, trabalhava ali por amor; não choremos pelo tempo gasto e o esforço feito, porque tudo valeu a pena e foi bem empregado, querida Lotta. Você pode se dar por bem paga.
Olhe, se você tivesse construído um monumento, um palácio, um hotel de cem andares, estaria longe de realizar obra tão bela e tão útil a tantos. Obra perecível e duradoura ao mesmo tempo, perecível porque a parte que depende da matéria viva, as plantas, pode morrer por abandono; e duradoura, quase eterna, porque, justamente sendo na maior parte feita de coisa viva, a vida em si tende a continuar, a crescer, a se perpetuar. As suas “arvrinhas”, aquelas miniaturas de árvores em que a gente tinha que imaginar as árvores adultas, já não exigem mais quase nenhum esforço de imaginação: aquelas mudas de viveiro já estão de copa larga e tronco elevado, já dão sombra; e quem for vivo daqui a dez, vinte anos, há de ver o bosque maravilhoso que delas se formará.
Nestes dias de verão, e a cada verão mais e mais, pode acreditar, querida Lotta, o seu Parque do Flamengo é a própria glória. As passarelas não sei como não caem ao peso dos passantes; é tanto povo que parece uma procissão permanente. E as passagens subterrâneas lembram entradas de metrô nas horas de movimento. A praia artificial, que era o seu orgulho, não perde para o luxo de Copacabana, Ipanema e Leblon. Com uma diferença importante: quem freqüenta o Flamengo é gente que não pode freqüentar a Zona Sul — são as pessoas a quem vulgarmente se chama “o povo”. Pessoas modestas, quase todas, a pequena classe média do Catete, Glória, Laranjeiras, Santa Teresa, Lapa, Mem de Sá, Riachuelo. Tanto que a proporção de automóveis estacionados por lá é ínfima em relação aos banhistas. Na sua grande maioria, os banhistas e passeantes vão a pé ou de ônibus e para eles, que vivem em apartamentos minúsculos, em quartos de casas velhas, o Parque é, literalmente, um céu aberto.
E não é só a praia. A Cidade das Crianças formiga de garotos ruidosos, exuberantes, que aproveitam ao máximo as amenidades oferecidas muito diversos desses meninos blasés, filhos de ricos, que só botam o seu pequeno derrière num balanço se for pelo menos no Disney World. Informo que puseram lá, ultimamente, um avião aposentado, que as crianças podem ocupar e manobrar, e foi realmente uma invenção genial.
Mas o triunfo mesmo são os campos de pelada; por maiores que fossem a sua paixão por eles e suas previsões otimistas, você não poderia adivinhar o sucesso que aqueles campos de pelada iriam constituir. Já são uma instituição da cidade e, se acabassem com eles, os cariocas fariam uma revolução.
Do resto das diversões que você criou, não posso lhe dar notícias minuciosas porque mudei para longe e hoje só passo no Parque às carreiras. Não sei o que é feito do campo de aeromodelismo, do tanque de navegação, do teatro de marionetes. Pena é que aquela gente que lhe tomou o parque tenha feito tão mau uso dos pavilhões dos playgrounds, obras-primas do nosso Reidy. Ao mais bonito puseram o nome idiota de “Pavilhão Japonês” e o utilizam para fins burocráticos; ao outro, antes que fosse abaixo, abandonado, mandaram para lá uns cacarequinhos e lhe deram o título de Museu de Arte Popular; o playground deste último jamais foi construído. Também as passarelas, que construíram quando começou a morrer gente demais nas pistas, são apenas uma caricatura daquelas joias de leveza e graça que, só de olhá-las, eram um consolo para Manuel Bandeira nas suas horas de melancolia.[1]
Isso, porém, não é nada. Afinal, o Parque, na sua totalidade, eles não conseguiram mutilar. Outros virão que acabem o que ficou por fazer. E pelo que já foi feito, não sou eu só que digo, são todos: seja você, querida Lotta, para sempre muito louvada.
Carta/ crônica publicada em O Cruzeiro, 16 de fevereiro de 1972.
[1] N. S.: Manuel Bandeira morou na Praia do Flamengo 122, no Edifício Maximus, de onde via a praia do Flamengo, e morou também na av. Beira-Mar, nos últimos anos de vida.