S.l., 4 de fevereiro de 1961

Desde que li nos jornais a notícia da morte de Vera, Vera Amado Clouzot, a estrela de cinema, Vera, a sua filhinha, desde esse dia que fico inventando palavras de consolo para lhe dizer e não encontro nenhuma. É fácil, há muito que falar quando se trata da perda de outros amores. Mas filho não. Filho é brutal demais. Não tem solução, não tem saída. Morreu, pronto. Uma palavra tão dura, tão simples, mas total – pois com ela tudo fica enterrado. Esperanças, alegrias, lembranças, e aquela se­gurança orgulhosa que a gente tem no filho – e aquele mistério do sangue e da alma.

Ai, essa coisa monstruosa de os filhos irem antes dos pais, essa orfandade às avessas que é contra todas as leis da natureza. E o lugar vazio, o buraco que se abre dentro do peito pelo filho que se foi. Você sabe como é, Gilberto. Passa o tempo, um dia, semanas, meses – podem-se ter passado exatamente 26 anos;[1] a gente não aceita nem se consola – embora de certo modo acostume. Vai vivendo, se­guindo adiante, chega a pensar que tudo voltou ao seu natural. Mas, de repente, qualquer coisa, uma palavra, um choque ligeiro, magoa a ferida escondida – e então, naquela hora, ela torna a doer com a mesma feroz intensidade da ferida viva, do próprio instante em que se abriu.

Vera Amado Clouzot. Uma das poucas pessoas do Brasil que furaram a barreira do silêncio internacional, contra a língua e contra a sudamericanidad. Era estrela pelo seu direito, estrela de verdade, capaz sozinha, ela tão miúda, de encher uma tela e um filme. Conquistou esse lugar de estrela pela força do seu talento (talento, esse elemento raro que, entretanto, parece ser a matéria-prima com que se fabrica a maioria das pessoas da família Amado!). O casamento com o diretor de cinema apenas lhe deu a oportunidade necessária para o salto – o mais, tudo era dela, sozinha. Tudo ela trazia consigo naquele pequeno corpo, nos olhos imensos, no sorriso encan­tador. Será consolo para você, Gilberto, pensar que, embora Vera esteja morta, há outra Vera imortal conservada pelo celuloide – a Vera inesquecível de Les Diaboliques,[2] na plenitude da vida, da mocidade, do talento dramático? Suponho que não. Talvez até doa mais, doa intoleravelmente, vê-la na vida fictícia da tela, tão ela mesma e tão distante, sombra que captou a sua essência imponderável, ah, os mistérios da técnica quando se mete pelos territórios da alma!

Esta carta sai pela revista em vez de ir discretamente pelo correio porque não estou falando só por mim, Gilberto Amado. Aqui represento o lamento enorme de todos os seus amigos, que você conhece e que você não conhece, que você adquiriu através dos seus livros – filhos seus também, como Vera, como Vera conquistadores de corações, obras de arte que você gerou, uma e outros.

Esses amigos todos que o amam e o admiram se compadecem profundamente da sua dor, nesta hora mais dura da sua vida. Vêm um pouco tímidos, com receio de importunar, quando você está entregue ainda ao terrível estupor do seu luto – mas querem que você saiba que há gente ao seu lado, presente, solidária. Não tentamos dizer palavras de consolo que não existem, que você recusaria. Apenas estamos aqui, seus amigos.

Você sempre foi um guerreiro, Gilberto Amado. E é, pois, nessa alma de guerreiro que os seus amigos confiam. Descubra as reservas de bravura que você há de ter escondidas, brigue com a vida mais uma vez, que nós estamos do seu lado. Volte ao papel, seu velho companheiro, à pena, às lembranças. Trate de se anestesiar escrevendo, dê à gente os outros livros que ainda faltam. Em homens do seu tempe­ramento, a emoção, por mais dura e arrasadora, é uma força, não uma fraqueza.

Escreva. Use esse dom poderoso que fez de você uma espécie de príncipe entre os homens; através dele você é capaz até de milagres. Até, por exemplo, de res­suscitar Vera no papel.

Deus lhe dê forças e coragem, Gilberto Amado, já que talvez não lhe possa dar consolação.

Rachel de Queiroz. O caçador de tatu. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, pp. 36-38.

[1] N.S.: Em 14 de fevereiro de 1935 morreu a filha de Rachel, Clotilde, aos dois anos de idade.
[2] N.S.: Filme de 1955 dirigido por Henri-Georges Clouzot, marido de Vera. No Brasil, o título é As diabólicas.