Londres, 7 de janeiro de 1895

Eis aí um fato de expressão quase trágica, sobre o qual se acaba de exercer distintamente a consciência dos dois povos que a Mancha separa: um, na maneira de resolvê-lo; o outro, na de considerá-lo. Decompostas através dele, como dois feixes diferen­tes de luz coados pelo mesmo prisma, destacam-se em matizes característicos certas qualidades de ordem moral, predominantes no espírito e na história das duas grandes nações.

Tudo quanto ressumbra das causas que geraram a terrível sentença resume-se na frase interrompida, em que madame Demange, ao abrir da audiência, declarou que a acusação inteira assentava exclusivamente em um documento contestado. A esta revelação do advogado, o oficial presidente lhe cortou a palavra, votou-se o huis clos,[1] e a instância imergiu no mistério, cujo termo é a condenação do acusado a penas de irresgatável infâmia.

Não me cabe descrever a cerimônia atroz da degradação militar, prelúdio feroz da expiação sobre-humana que se abriu ontem para o malfadado. Essa cruel solenidade horrorizou a Europa. Antes de se separar irremissivelmente da pátria, amal­diçoado pelos seus conterrâneos, para ir agonizar, sob o indelével ferrete, em remoto presídio penal, esse infeliz passou pelos tratos do mais tremendo suplício conhecido na história das torturas morais. O formidável espetáculo fora preparado com todos os requintes da encenação regulamentar. Quando o condenado en­trou no quadrângulo da Escola Militar, as insígnias, que ainda lhe sobressaíam na farda, já não figuravam ali senão por artifício convencional, como outros tantos estigmas no peito e na fronte daquele homem. O alfaiate substituíra de véspera as costuras por alinhavos; o cuteleiro partira e ressoldara a espada, que no outro dia se devia quebrar publicamente diante das tropas. A lenta e implacável pragmática esgotou no flagelado o cálix das afrontas possíveis. Se entre elas não figura o esbofeteamento, dir-se-ia que não é senão para poupar à mão do executor o vilipêndio do contato com o rosto do réprobo. Desde o quepe até as listas vermelhas das calças, um a um lhe caíram aos pés, arrancados por um subalterno, os emblemas da dignidade militar. Ficaram-no envolvendo apenas os restos negros e rotos da farda, imagem do luto pela honra que acabava de despir. Nesse miserável extremo ainda lhe coube a penitência de transpor as filas do quadrado; e, entregue então à polícia civil, submetido, como os criminosos comuns, à medição antropológica, passou das mãos dos seus camaradas às dos gendarmes, para acabar os dias em Nova Caledônia, entre a escória dos criminosos, onde a família irá respirar com ele o ar dos galés.

Qualquer que fosse o crime daquele desgraçado, a rebuscada e caprichosa desumanidade dessa punição revolta profundamente o sentimento contemporâneo. Aqui o efeito foi de indignação e espanto. A repugnância ao escândalo por pouco se não transmudou em misericórdia e simpatia pelo aflito. “A cerimônia da degrada­ção”, escreve o senhor de Blowitz em um dos seus telegramas ao Times, “apresenta hoje em dia um espetáculo de aspecto bárbaro, do qual nenhuma lição se pode colher. É deplorável que se não pudesse pronunciar a pena de morte.”

A Pall Mali Gazette, uma das folhas inglesas que mais reserva guardaram no tocante ao processo Dreyfus, soltou esta tarde os diques ao seu humour e à sua severidade nestas palavras: “Não há muito que a Europa metia à bulha o imperador da China pelo seu sistema obsoletamente bárbaro de punir arrancando botões ao acusado. Contudo, o contágio já se comunicou à França. Custa a perceber o proveito da repulsiva cena celebrada sábado na praça da Escola Militar. A degradação simbólica, nas leis militares, é uma relíquia da média idade, em que a investidura se operava também por um ritual solene. Compreendemos o clamor pela execução de espiões e traidores. Compreenderíamos, até, como recurso disci­plinar, a eficácia e o valor de um aparato como esse, quando levado a efeito no campo de batalha. Mas, devemos confessá-lo, os pormenores da degradação, concebidos e postos por obra a sangue-frio, meses após a perpetração do alegado crime e semanas depois da sentença proferida contra o infeliz, deixam-nos a impressão de uma penalidade quase materialmente idêntica à tortura”.

Dilacerante, como é, todavia, essa expiação no seu cortejo de circunstâncias terríveis, não conseguiu moderar, em França, o espasmo de ódio insaciável, que agita contra o acusado todas as classes da população. “Até agora”, observa o correspondente do Daily News, “não se imaginava a comoção de Paris, quando, há um século, ao reboar o grito de perigo da pátria, o rei e a rainha foram enviados ao cadafalso como cúmplices da invasão estrangeira.” Mas as cerimônias da guilhotina nem sempre acabam entre bravos e palmas, como a execução do assassino de Carnot. Entre os espectadores do patíbulo há, muitas vezes, corações tocados de compaixão e olhos úmidos de lágrimas. Na turba que cercava de longe o suplício de Dreyfus só havia lampejos e acentos de ira. Tão miseranda é a sua sorte que a polícia, ao que se diz, terá de adotar precauções para lhe defender a vida contra a indignação patriótica dos calcetas. E, segundo o Figaro, quando o ex-oficial, saciado de opróbrio, ao passar pelos oficiais da reserva, renovou o seu protesto insistente de inocência, um deles cuspiu-lhe à face o epíteto de “Judas”.

“Este episódio”, telegrafa o correspondente do Times, “recor­da-me o que se deu no ano de 1871, em Bordeaux, quando a Assembleia ali trabalhava. O serviço de sentinelas fora confiado à guarda nacional, que aderira à República, e tinha em conta de reacionária a Assembleia. Uma vez, quando Thiers descia as escadas do teatro, onde ela funcionava, um guarda nacional gritou: Vive la Republique! Thiers, com o olhar chispeante, caminhou para o soldado, sacudiu-o pelo braço, e, com o agudo peculiar da sua voz, ainda mais timbrada pela paixão, lhe bradou ao ouvido: On ne parle pas sous les armes.[2] Desconfio que ele teria dito o mesmo a este oficial da reserva, futuro guarda nacional.”

Que faculdade sobre-humana deu àquele homem energia bastante para sobreviver às emoções incomportáveis dessa prova­ção? A não se tratar de um miserável, bronzeado na fronte, calejado no coração pela prática habitual dos vícios que emasculam o caráter e saturam de impudor os mais baixos vilões, só duas forças seriam capazes de forrar uma alma contra a abjeção incomparável daquela queda, contra o desespero inaudito daquele destino: a insânia, ou a inocência. Ora, Dreyfus não tinha no seu passado uma nódoa, um traço duvidoso. Quinze anos de serviços imaculados e a alta posição de confiança que ocupava no mais delicado ramo da administração da guerra definem-lhe a fé de ofício. A superabundância dos seus recursos, a opulência de sua família, a simplicidade dos seus hábitos, a sua aversão ao jogo, a concentração exclusiva da sua vida particular nas afeições domésticas excluem a suspeita das seduções tenebrosas, que são frequentemente a explicação obs­cura dessas catástrofes da honra. De onde viria, pois, a tentação inexplicável, que instantaneamente prostituiu aquele ornamento da sua classe, aquela nobre esperança dos seus concidadãos?

Narram as testemunhas atentas do suplício que o executado não empalideceu nunca. Os passos não lhe vacilaram. Não lhe tremeu a voz. A cabeça esteve-lhe sempre ereta. Ao ver, de manhã, preparada a sua farda para a cerimônia. “Capitão”, disse ele ao oficial presente, “estais sendo instrumento da maior injustiça deste século.” Quando, ao empuxão do executor, o quepe lhe desceu sobre os olhos, a mão levantou-se-lhe como invocação de um inocente: “Por minha mulher e meus filhos”, exclamou, “juro que sou inocente. Viva a França!”. Aos apupos de um grupo de oficiais, “com admirável império sobre si mesmo”, diz um jornalista, respondeu serenamente: “Feri, mas não insulteis. Eu sou ino­cente”. E, ainda ao sair, no momento em que os gendarmes lhe punham algemas, teve forças para dizer aos seus camaradas do 59 de infantaria: “Crede-me, senhores, sou um mártir!”

A insistência desse protesto, com as circunstâncias que o distinguem, precedem e circundam, não tem analogia na crônica das hipocrisias do crime. Sua repercussão no jornalismo inglês, alheio às alucinações locais, sóbrio, como se sabe, em pontos de sentimentalismo, mas inclinado à retidão própria dos costumes jurídicos deste país, foi vasta e profunda.

A Pall Mali Gazette enuncia-se assim: “Segundo todas as informações, o capitão Dreyfus sofreu a provação mais dilaceradora a que se podia expor um homem de cuja sensibilidade moral ainda restasse alguma coisa, com um estoicismo antes conciliável com o sentimento da inocência do que com a consciência do crime”. E, depois de considerar nas antecedências honrosas do condenado, conclui: “A ser assim, Dreyfus será um inocente, ou um louco”.

O Daily Graphic, que ainda se não pronunciara a favor dele, remata hoje com estas ponderações: “As dúvidas existentes e francamente exprimidas fora da França na questão da criminali­dade ou inocência de Dreyfus não sofrerão quebra, por certo, em presença da singular fortaleza com que o condenado padeceu o medonho castigo. A sua firme protestação de inculpabilidade tende naturalmente a suscitar a crença de algum erro cometido contra ele”.

Mas entre franceses não é lícito sequer pôr em dúvida o crime de Dreyfus: “Quem quer que deixasse transparecer, a esse respeito, a menor incerteza, ou denotasse o mais leve sentimento de comise­ração, seria encarado com o mesmo horror e o mesmo ódio que o próprio traidor”. Pleno arbítrio de negar a Deus, aluir a proprieda­de, santificar a comuna, divinizar Marat; mas obrigação estrita e universal de teimar e bater fé em como Dreyfus é o mais desprezível dos malfeitores. “Nisto se afincou o público desde o primeiro dia”, escreve um correspondente inglês. “Criminoso de quê, esse criminoso? Ninguém o sabia; e, até hoje, ninguém dentre o público o sabe. Todavia, a existência da traição passou em julgado como fato indisputável.”

Onde o corpo de delito? Onde a identificação entre o seu autor e o acusado? Ninguém seria capaz de mostrá-lo. Ninguém viu o processo. Ninguém tem notícia de documentos, ou depoimentos. Fala-se em um papel, cuja letra se atribui ao condenado. Mas o que a esse propósito se conhece, por indiscrições publicadas no Figaro, é que, de cinco peritos ouvidos sobre o caráter da letra nesse escrito anônimo, se três reconhecem a de Dreyfus, dois sustentam o contrário.

Essa multidão espumante que cercava, ameaçadora, a Escola Militar, bramindo insultos, assuadas e vozes de morte, que mais era, portanto, afinal, do que uma força violenta e cega, como os movimentos inconscientes da natureza física? Pela minha parte, não conheço excessos mais odiosos do que essas orgias públicas da massa irresponsável. Nada seria menos estimável, neste mundo, que a democracia, se a democracia fosse isto. Esses escândalos representam o pior desserviço à dignidade do povo, e constituem o mais especioso argumento contra a sua autoridade. Não é sob tais formas que ele se há de mostrar digno da soberania, cujo cetro as tendências da nossa época lhe reconhecem. Se o número não souber dar razão dos seus atos, se as maiorias não se legitimarem pela inteligência e pela justiça, o governo popular não será menos aviltante que o dos autocratas. Nem a invocação da pátria imprime a tais desvios fisionomia menos antipática. Mal honram a pátria as contorções de um patriotismo histérico, que vive a se superexcitar com a obsessão de traições, que julga de oitiva, fulmina por palpites, e instiga os magistrados a prevaricarem, antepondo a popularidade à justiça.

Aqui, onde não chega o revérbero ardente do braseiro francês, ninguém compreende o encarniçamento da imprensa daquele país sobre o cadáver moral de Dreyfus. O governo excluiu da cerimônia os jornalistas estrangeiros, sob uma razão de decência. O pudor da França queria encerrar no círculo doméstico o aparato da ignomínia de um homem que vestia o glorioso uniforme do Exército francês. Entretanto, no dia imediato à execução, parecia ter-se posto a prêmio entre os jornais, como tema de concurso literário, a descrição do espetáculo, sobre cuja humilhante crueldade se tinha querido baixar o véu da vergonha, o mesmo véu que, ao menos por coerência, diz o Standard, devia ter coberto a execução de uma sentença, cuja gestação se incubou às ocultas.

Não contentes, os diretores morais da opinião, naquela grande metrópole de tantas cruzadas humanitárias e liberais, encetaram uma campanha, a que se diz vai ceder o Governo, para se aditar aos sítios de degredo a Guiana Francesa, que oferece aos irritados pela benignidade da condenação de Dreyfus a segurança de uma polícia mais eficaz e um clima ainda mais funesto ao homem do que o da Nova Caledônia. Custa a compreender que interesse nacional possa haver, deveras, para a França em acumular sofrimentos sobre os restos de vida sobrenadantes àquele naufrágio. Nessa extrema descaridade parece haver alguma coisa da mutilação após o sacrifício, que, em certos estados bárbaros, assinalava os costumes penais, e revelar-se a bête humaine[3] acordando inespera­damente no homem civilizado. Pois em verdade ainda haveria agonias que espremer daquela agonia? Para a lição moral, assim como para o efeito expiatório, a medida ainda teria muito que encher?

Como quer que seja, votar uma lei, para agravar a miséria de um condenado, seria singular novidade na história penal destes tempos. Nessa medida, adotada especial, senão expressamente, para sobrecarregar as consequências de uma sentença já proferida, ferindo um homem já esmagado, há uma intenção de vindita individual, um caráter de rancor, um elemento retroativo que as noções de direito cristão não tolerariam. Não importa que seja apenas trocar degredo por degredo. Se a nova localidade se elege, por ser mais áspera, mais inóspita, menos habitável do que as contempladas na lei sob que se proferiu o julgado, a alteração projetada seria, em substância, uma verdadeira revisão de senten­ça por ato legislativo, isto é, um mal dissimulado exemplo dessa retroatividade penal, que todas as legislações contemporâneas estigmatizam.

Se os oficiais que compunham o conselho de guerra dispuses­sem, na hipótese, da pena de morte, certamente, a meu ver, não hesitariam em pronunciá-la. Essa decisão, mais clemente e mais heroica a um tempo, encerraria, ainda, para a classe a que pertencia o degradado, a vantagem de poupar-lhe, com a eliminação imediata dessa existência aviltada, o reflexo inevitável de vergonha destingido sobre os seus antigos companheiros de armas. Só um obstáculo insuperável na letra da lei poderia deter a mão aos juízes fardados, em cujo espírito a indignação e a piedade, de mãos dadas, deviam pleitear pela pena capital.

O tribunal recuou, com efeito, ante disposições legislativas na sua opinião inelutáveis. O artigo 76 do Código Penal consignava a morte como a pena reservada aos crimes da natureza do imputado a Dreyfus. Mas a Constituição de 1848 aboliu a pena de morte nos delitos políticos, entre os quais se incluía a traição militar, e a Lei de 8 de junho de 1850 fixou, para esses casos, o degredo com prisão perpétua numa fortaleza, acrescentando que as pessoas incursas nessa cominação desfrutariam a liberdade compatível com a segurança necessária à custódia dos condenados.

Não me cabe apreciar o acerto, ou desacerto, do direito francês neste ponto. Computando a traição militar entre os delitos políti­cos, ele obedeceu à lógica de uma filantropia, cuja influência se assinalou no Brasil republicano por um espécimen curioso, na extinção absoluta da pena de morte por estatuto constitucional, com reserva apenas das disposições militares em tempo de guerra. Todos, aliás, conhecem o valor dessa barreira moral em certos países. Na França, porém, os juízes de Dreyfus, apesar de homens de espada, a consideraram inviolável. Se houvessem de pronun­ciar-se como legisladores, o seu voto seria provavelmente diverso. Aquele que tachar de excessiva a pena de fuzil, para o crime de que se acusa Dreyfus, não poderia admiti-la para outro. Se há delito equiparável ao parricídio, é esse, felizmente não menos raro do que o seu congênere. O oficial que entregou ao inimigo os planos de defesa da pátria emparelha com o que vende ao inimigo a vida dos seus camaradas. O opróbrio dessa inconfidência suprema equivale ao da traição no campo. Um soldado, um cidadão não pode perpetrar atentado mais negro. Não há militar, não haveria talvez estadista, que não lhe cominasse resolutamente a última pena.

Uma coisa, porém, é fazer a lei; outra, executá-la. E os julgadores de Dreyfus, unânimes em condená-lo, acordaram com a mesma unanimidade no respeito ao seu papel de aplicadores da vontade escrita do legislador.

Na dignidade com que desempenharam essa grave magistra­tura, no império, que, a bem dela, exerceram sobre os seus próprios sentimentos e as paixões dos seus compatriotas, aqueles sete oficiais deram à opinião versátil e irritadiça do país um exemplo virtuoso. A França, porém, não se satisfez com a sentença. No sentir, por que assim digamos, unânime de Paris, Dreyfus devia ter sido condenado à morte. Essa foi a voz das ruas, a da imprensa e a da tribuna. Os radicais trovejaram tempestades contra o governo e a situação social. O Parlamento incendiou-se em uma cena de escândalo. O próprio elemento moderado teve que render o seu preito à força da corrente, propondo às Câmaras, por órgão do governo, a cominação da pena extrema à espionagem em tempo de paz; como se a precipitação remediasse o caso julgado, ou se as reformas semeadas pelos furacões políticos na região do direito penal pudessem lançar raízes na consciência dos povos, e levantar-lhes a moralidade.

O povo soberano, os partidos e governos, entre as nações sem disciplina jurídica, estão sempre inclinados a reagir contra as instituições que se não dobram aos impulsos das maiorias e às exigências das ditaduras. A lei foi instituída exatamente para resistir a esses dois perigos, como um ponto de estabilidade superior aos caprichos e às flutuações da onda humana. Os magistrados foram postos especialmente para assegurar à lei um domínio tanto mais estrito, quanto mais extraordinárias forem as situações, mais formidáveis a soma de interesses e a força do poder alistados contra ela. Mas há nações, que a não toleram senão como instrumento dos tempos ordinários; e, se encontram nela obstáculo às suas preocupações, ou às suas fraquezas, vão buscar a salvação pública nos sofismas da conveniência mais flexível, a cuja sombra os impulsos instintivos da multidão, ou as aventuras irresponsáveis da autoridade se legitimam sempre em nome da necessidade, da moral, ou do patriotismo.

Não há mais odiosa iniquidade, alegam, do que passar pelas armas o conscrito, cuja mão, sob o frenesi de um desvario momentâneo, se levantou contra o seu superior, e poupar a vida ao oficial, que, refletida e interessadamente, atraiçoa a sua pátria, isto é, alia-se, contra ela, ao estrangeiro. Assim discorre a dialética, e assim raciocina o francês. Porque o francês não adverte em que a lei é a lei com todas as suas insuficiências, todas as suas desigualda­des, todos os seus ilogismos, e em que a observância dela é o caminho para a sua reforma, único remédio real aos seus defeitos, menos funestos, em todo caso, do que o arbítrio da razão humana, encarnada no número, no poder, ou na força.

Certo, responde o inglês, no seu ponto de vista, que acabo de antecipar; certo, o crime de Dreyfus é tamanho quanto o do pobre soldado, senão maior, muito maior. “Mas” (e aqui deixo falar um dos mais altos inspiradores da opinião no Reino Unido),

“o caso é que a lei fixa a morte como a cominação adequada, numa espécie, não na outra; e os exércitos não se mantêm senão pela mais rígida aderência a leis inflexíveis. Se o capitão Dreyfus fosse fuzilado, nenhum oficial mais nunca se sentiria em segurança; porque, de futuro, qualquer outra lei, que tocasse a oficiais, poderia ser conculcada por uma explosão do sentimento público. Assim, por exemplo, a que legitimasse a repressão militar de movimentos sediciosos. Se a lei favorece em demasia os traidores, é modifica­rem a lei. A Câmara francesa trata agora de converter em delito de pena capital a traição, ainda quando inspirada por motivos políticos. Pela nossa parte, não temos que objetar. Fuzilar, porém, o capitão Dreyfus em virtude de uma disposição retroativa, seria extinguir esse sentimento de confiança na seriedade da lei, tão essencial à disciplina quanto a própria severidade.

Estas palavras são do Spectator, que representa, na Inglaterra, a mais fina flor da cultura jornalística e, ao mesmo tempo, o equilíbrio mais exato entre as opiniões moderadas.

A tendência, não sei se diga francesa, se latina, a condenar por impressões, a antecipar as sentenças, a se substituir aos juízes, e a ditar arestos aos tribunais tomou, neste ominoso episódio, feições dignas de estudo no seu contraste com o sentir de aquém-Mancha.

Dias antes do julgamento, o correspondente do Daily News tinha com certo advogado francês um diálogo, que mereceu reprodução integral em telegrama a essa folha, uma das mais influentes na política do país. − “A opinião, hoje, nos tribunais”, dizia o jurista, “é que Dreyfus, infelizmente, sairá absolvido.” − “Por que infelizmente?” − “Porque é deplorável que esse canalha, desonra da França, não sofra o que merece.” “Mas, supondo que o conselho de guerra o absolva, não acreditais na honestidade dos juízes?” − “Os juízes farão seu dever; mas, se absolverem, é porque não terão encontrado provas contra Dreyfus.” − “Isso é claro”, acudiu o jornalista. − “Mas o que eu quero dizer”, retrucou o advogado, “é que, se não se acharem provas, será porque as autoridades as terão sonegado.” − “Suponde, porém, a inocência de Dreyfus.” − “Se ele fosse inocente, acreditais que haveria da parte de potências estrangeiras (da Alemanha e da Inglaterra) todo esse afã por exculpá-lo?” − “Mas deveras andam potências estrangeiras tão empenhadas na soltura de Dreyfus?” − “Ora muito inocente sois em me fazer tal pergunta.” − “Mas demos que assim seja: não é culpa de Dreyfus.” − “Talvez não; mas o fato demonstra o seu crime.”

E era um homem do foro, versado no hábito de lidar com as delicadas questões da prova judiciária, quem, de olhos fechados, fulminava essa condenação absoluta, num caso cuja prova, até hoje, não se conhece, e a cujo respeito ninguém, fora do círculo dos membros do tribunal condenador, pode afirmar sequer a existência de provas, dignas de tal nome.

O que nos deixa calcular ainda melhor a temeridade das prevenções que agitam, neste assunto, a fibra doentia do patrio­tismo francês, é a mancomunação em que se sonhou figurarem várias potências europeias como cointeressadas no escape de Dreyfus. À Alemanha coube naturalmente o primeiro quinhão na suspeita que obrigou a embaixada do império em Paris a sair à imprensa, protestando pela sua inocência na culpa do acusado. As folhas inglesas deram-se os parabéns de que o vizinho deste lado da Mancha não fosse escolhido para substituir, na posição de scapegoat, de bode expiatório, o inimigo de além-Reno. Não há dois meses que o Figaro, com a perspicácia de vieux malin[4] que se lhe conhece, dava ao mundo a estupenda nova de que os sportsmen ingleses de primeira classe, os blasés das emoções da caça ao tigre, se tinham organizado em excursão venatória a Madagascar, com o intento de aproveitarem a expedição francesa contra os Hovas, para se exercitar no Tir aux Français. “Esse esporte de novo gênero, sem precedentes nos anais do mundo civilizado e, até, do mundo bárbaro, não é de todo novo” (acrescentava seriamente a folha parisiense) “para os nossos amáveis vizinhos da outra banda do canal. Ao que parece, já se entregaram a esse passatempo contra os nossos soldados dispersos em Tonkin e no Dahomey.” E, no país mais morbidamente sensível ao ridículo, essa ridícula monstruosidade percorreu circunspectamente, como rebate dado ao sentimento nacional, toda a imprensa francesa, produzindo nos ânimos superexcitação tal, que o governo teve que descer à necessidade de desmentir a grotesca atoarda. Ainda mais recen­temente, não há duas semanas, creio eu, outro jornal francês contava, com o mesmo aprumo, a história do suborno recebido pelo senhor Clemenceau do Tesouro britânico, para advogar os interesses da Inglaterra no Parlamento e na imprensa. O deputado francês viera em pessoa a Londres, para embolsar ele mesmo a propina, que Lord Rosebery, o premier inglês, se dignou de ir entregar-lhe no Reform Club, em Pall Mali. O Daily News esfrega as mãos de que a Inglaterra evitasse o estigma no caso Dreyfus. Essa fortuna, diz ele, vem provavelmente de estar já transbordando a taça da nossa infâmia com a transação entre Lord Rosebery e o senhor Clemenceau.

Não pode haver absurdo, já se vê, por descomunal e risível, que não encontre monção favorável na credulidade daquele país, quando a corda patriótica estremece em um desses períodos de vibração tão comuns ali desde 1870. Estranho fenômeno o da rapidez e intensidade com que, em uma nação de gênio tão lúcido, e qualidades tão fortes, esses desvarios emergem à tona da opinião agitada, assumindo às vezes a aparência das grandes vagas de tempestade.

Considerando nisto, o observador estrangeiro dificilmente poderá furtar-se a uma impressão de dúvida em face do caso Dreyfus. Esse homem estava condenado pela intuição geral dos seus compatriotas, antes de sê-lo pelo tribunal secreto, que o julgou. Mas essa intuição ofereceria mais visos de solidez do que a que andou buscando entre as potências rivais da França outros tantos padrinhos e corréus do acusado?

A St. James Gazette, em um editorial sob o título de “Traitor or victim?”, não vacilou em sugerir como perfeitamente possível a hipótese de uma injustiça na condenação de Dreyfus. “Não é mister”, diz ela, “duvidar, um momento sequer, da honorabilidade dos oficiais que constituíram o tribunal. De boa mente, e sem a mínima reserva mental, os damos por tão honestos quanto os oficiais ingleses que funcionaram nos conselhos de guerra, a que foram submetidos os tripulantes e capitães do Anson e do Victoria. Mais não poderia dizer um inglês. E, todavia, não há quem, lendo as atas do processo nesses dois feitos, não concebesse as mais sérias desconfianças acerca da capacidade dos tribunais marciais como mecanismo fidedigno para a apuração da verdade. Um oficial e um gentleman não são necessariamente bons aquilatadores em ques­tões de prova. E as circunstâncias em que se reuniu o conselho de guerra francês não favorecem a hipótese de que estivesse em condições de deliberar com toda a imparcialidade precisa.”

Semanas antes do julgamento o ministro da guerra qualificara de indubitável a culpabilidade do acusado. O general Mercier, na opinião dos seus próprios conterrâneos, não prima pela discrição; e “não seria absurdo supor que outros, além dele, no exército francês, tivessem formado juízo antes do processo”. A arguição pertence, por sua natureza, ao número das que mais tendem a suscitar prevenções imediatas contra o acusado. Essas prevenções surgiriam naturalmente, ainda quando se não tivesse produzido a exaltação pública ateada pela declaração prematura do ministro da Guerra. Nada perturba mais profundamente a serenidade aos homens públicos, em França, do que o receio de incorrerem na tacha de tibieza patriótica. A influência exercida por esse temor era singularmente agravada, na espécie, pela presunção de ameaça à “defesa nacional”. Quando a cólera francesa se acende ao grito irreflexivo “Nous sommes trahis”,[5] o incêndio lavra por todas as classes, poucos o evitam, e raros ousarão arrostá-lo. Os militares são, de mais a mais, especialmente susceptíveis neste particular. A imagem da Alemanha projetava sobre a questão o crepúsculo sinistro dos seus malefícios. O dever de hostilidade à velha inimiga acentuava-se em uma dessas nevroses, de que a mania da espiona­gem, tão comentada e já proverbial na imprensa inglesa, é outro sintoma peculiar. Dificilmente se conceberia, ainda em tribunais civis, o vigor de ânimo preciso, para julgar com calma, em França, a causa de um francês suspeito de pactuar com alemães. Que não será, nos tribunais militares, em pleito de antemão sentenciado pela “opinião pública”, e tratando-se, por cúmulo, de um acusado, em cujas veias circula sangue judaico?

O certo é que, valham o que valerem estas e outras interroga­ções, formuladas na imprensa inglesa, a cotação moral da sentença fulminatória contra Dreyfus ficará dependente sempre da con­fiança implícita que os membros do conselho de guerra e a unanimidade do seu veredictum inspirarem, mais ou menos im­perfeitamente, a cada espírito. Sete oficiais superiores não podiam conchavar-se no crime de condenar um camarada inocente. A prova, que satisfez com igual plenitude aquelas sete consciências, devemos supor que satisfaria absolutamente a outras quaisquer, por mais provectas, exigentes e severas na liquidação da verdade judiciária. Mas, se o crédito pessoal dos juízes e a confiança na sua capacidade profissional bastassem para dispensar a garantia suprema da justiça, a publicidade, o argumento procederia com a mesma força em relação a todos os tribunais civis e militares, aos quais todos assiste a presunção de honra e competência; e, conseguintemente, o sigilo, a tradição medieval e bárbara, devia restabelecer-se como regra geral do processo. Rejeitar a conclusão, rigorosamente lógica, é confessar o vício da premissa. A clan­destinidade do processo inquina de suspeita as decisões mais justas. Os tribunais mais ilustres dependem, para a sua respeitabilidade moral, da luz que derramam sobre o espírito público, do esclarecido assentimento que neste conquistam.

Mas o segredo, no processo Dreyfus, é, talvez, consequência da sua origem. Segundo as notícias correntes na imprensa europeia, dentro e fora da França, todo o edifício da acusação assentava em um documento subtraído a uma legação estrangeira. Divulgá-lo seria arriscar, a um tempo, a segurança do país e a honorabilidade da acusação. Confessar a subtração era colocar-se mal, para vindicar a honra da nação, e dar ao exército, na condenação do acusado, uma lição de honra. Resta saber se a contradição moral envolvida nesse proceder não é antes uma homenagem às paixões intolerantes do que um serviço à justiça pacificadora.

Como quer que seja, na Inglaterra a forma inquisitória dada em França a esse julgamento seria hoje impossível. O Times, a tradição viva deste país, exprimiu o sentimento inglês sobre o assunto num artigo memorável. Não sei resistir ao prazer de transcrever-lhe os trechos capitais. Fá-lo-ei, porque, além de tudo, nenhum país necessita mais de lições como esta do que o Brasil destes dias.

“Quando entramos a considerar nas circunstâncias do pro­cesso” – diz ele –, “não podemos acabar conosco ocultar o nosso espanto, ao vermos o modo positivo como, em Paris, vulgo e imprensa dão por incontroversa a criminalidade do acusado. Asseveram-nos que a opinião pública e os periódicos aprovam unanimemente o veredictum do conselho de guerra. Mas o processo correu a portas fechadas, e o público parisiense, portanto, absolu­tamente não pode ter fundado a sua aquiescência no conhecimento dos fatos em que assentou a condenação. Ao instaurar-se o processo, a semana passada, o acusador por parte do governo reclamou que a investigação se fizesse em segredo. A regra geral em vigor nos tribunais militares, em França, fulmina de nulidade os processos que se não celebrarem publicamente; mas reserva aos juízes o arbítrio de estabelecer o sigilo, nos casos em que a publicidade lhes pareça envolver risco para a moral, ou para a ordem. Assim se resolveu na espécie do capitão Dreyfus. O seu advogado, madame Demange, lavrou protesto, e tentou arguir o ponto. Mas cortaram-lhe peremptoriamente a palavra. Qual seja o do­cumento a que ele aludiu como o único esteio da acusação, e porque reputaram necessário ocultar-lhe o caráter e a origem, questões são estas que a resolução do tribunal deixou à mercê das conjecturas públicas. É voz que o documento, ou os documentos, subtraídos pelo capitão Dreyfus, tinham sido comunicados por ele à embaixada alemã, e que desta se retiraram por outro ardil do mesmo gênero. Mas, apesar de terem sido secretos os trabalhos do conselho de guerra, foram dados a lume os nomes das teste­munhas, e deste modo se sabe que nem de uma nem da outra parte se citou a juízo ninguém da embaixada alemã, ou de outra qualquer legação estrangeira.

Não queremos censurar o melindre do povo francês a pro­pósito de infrações que envolvem não só a segurança de uma grande potência militar, senão também a santidade de deveres particularmente imperiosos para o soldado. Contudo, não po­demos deixar de refletir que, quanto mais odioso e impopular for um crime, tanto mais de preceito é que a sua verificação e o seu castigo se rodeiem de todas as salvaguardas da justiça pública. E delas a mais indispensável é a publicidade.

Na Inglaterra seria impossível admitir a uma agregação de oficiais, fossem quais fossem, o direito de julgar a portas cerradas uma querela susceptível de resolver-se em penas infamantes, mais aniquiladoras, por assim dizer, para um homem de honra, do que a própria morte.

Em verdade, a prevalecer o aresto desentranhado agora dos piores dias da revolução e do absolutismo napoleônico, não há motivo para não se deliberarem nas mesmas condições, a portas fechadas, sentenças capitais, sob o pretexto, cujo árbitro absoluto ficaria sendo o próprio tribunal, de que a ordem periclitaria com a publicidade.

Pode haver, bem se compreende, importantes documentos militares, tais quais os que se dizem desviados pelo capitão Dreyfus, cuja natureza dite às autoridades prepostas ao serviço da guerra a conveniência de obstar-lhes a ventilação pública do conteúdo. Mas nada mais fácil a qualquer tribunal do que discutir a identidade desses documentos, e tratar a questão do seu extravio criminoso, ou da sua apreensão ilegítima, sem consentir, en­tretanto, em que a sua matéria transpire. Do que se praticou no processo Dreyfus, a parte censurável não está em se encobrir ao público o teor dos papéis, que se averbam de furtados, senão sim em condenar o réu, sem a comprovação, em tribunal aberto e mediante depoimentos solenes, de que o acusado foi realmente o autor do furto.

Os membros do conselho de guerra eram, não há dúvida, homens de bem, cujo empenho se cifrava em fazer justiça. Mas, por outro lado, não podemos esquecer que o caráter da imputação, de que se fazia cargo ao capitão Dreyfus, devia, pela sua índole, predispor contra ele o espírito do exército, bem como o do povo, e que o único amparo contra essa influência havia de estar na publicidade assegurada aos argumentos da defesa e à inquirição das testemunhas. Além de que é para temer que a propaganda antissemítica, acesa em França, avivasse a hostilidade contra o capitão Dreyfus, membro de uma família hebreia bem conhecida, e a favor de quem um homônimo, o Grande Rabino de França, foi nomeado testemunha. A presunção é, certamente, que a sentença do conselho de guerra obedeceu à prova confidenciada exclusiva­mente a esse tribunal. Mas as condições de sigilo infelizmente imposto ao processo geram dúvidas, que, no caso de arguição tão grave, associada a penas severas e oprobriosas, não deviam ficar indecisas. Se importa ao povo francês guardar os segredos da administração da guerra, infinitamente mais importante é, para ele, preservar, nas suas instituições, a justiça pública da suspeita sequer de iniquidade, ou subserviência às correntes da paixão popular.

Esse hábito de colocar os direitos permanentes da justiça em altura inacessível às conveniências do governo, às crises da política, ao clamor das tormentas populares, é a virtude cardeal da Inglaterra. Todas as opiniões e todos os partidos, aqui, estão unificados no sentimento inerradicável desta necessidade.

Essa unanimidade, perpetuada através de todas as situações, nos dias prósperos e nos dias calamitosos, infundiu ao indivíduo uma confiança absoluta na ordem social, e apoiou solidamente nessa confiança o interesse comum; de modo que o povo mais individualista da terra é, ao mesmo tempo, aquele onde mais desenvolvida se acha a consciência ativa da solidariedade humana e da coesão nacional. Graças a essa estabilidade e a essa soberania do princípio jurídico, dominando todas as esferas da vida coletiva como a lei a que todas as outras leis se subordinam, é que a Inglaterra descreve, entre as outras nações, essa longa órbita de paz, cuja curva majestosa ainda está por medir.

Outros povos, muito menos confiantes na justiça, têm nela apenas um frágil teto de vime artístico para os dias tranquilos e azuis, devassado, roto e lançado ao chão pela primeira borrasca que desce do céu. Esses, quando os ventos maus lhes toldam o horizonte, dão-se pressa em abandonar as garantias do direito, como os primeiros esteios ameaçados, para ir pedir ao empirismo dos políticos sem convicções, ou à estrela dos déspotas sem escrúpulos a panaceia miraculosa, ou o signo salvador. E então os mais desacreditados instrumentos da arte de oprimir, os golpes de autoridade, os tribunais de exceção, as justiças secretas se preconizam em novidades salutares, e dominam sem freio, ora em nome das leis, sofismadas mais ou menos capciosamente sob color do bem público, ora em nome do bem público, declaradamente sobreposto às leis. Essas nações, fadadas ao cativeiro alternativo da anarquia e da ditadura, cuidam fugir da desordem, evocando o arbítrio, e não fazem mais do que oscilar periodicamente entre a agitação demagógica e a inércia servil. É para elas que se imortalizou a frase de Sieyès: “Não sabem ser justos, e querem ser livres!”

Afortunada condição, a todos os respeitos e insular no meio do mundo contemporâneo, a deste país! As suas antigas liberdades, as mais veneráveis da Terra, desafiam intempéries e perigos, abri­gadas à toga dos seus juízes, como as crenças austeras do seu culto sob o mármore das suas velhas catedrais.

“Com que palavras poderemos deplorar assaz o infortúnio de viver sob um governo como o nosso?” dizia, sobre Luís XVI, uma amiga de Turgot. “Fraca e desditosa criatura como sou, eu preferiria, contudo, a sorte do mais insignificante membro da nação inglesa à de soberano da Prússia.” Quantas vezes, aqui, o forasteiro experimentado nas misérias da impostura das formas liberais nos nossos tempos, sob as democracias mais pretensiosas, não será levado a fazer, em relação a elas, com a República do Reino Unido, o mesmo confronto que mademoiselle de Lespinasse, nos fins do século dezoito, em relação à monarquia francesa, evolver os olhos, com a mesma inveja, para este torrão tranquilo, onde amadurecem, na paz e na liberdade, para uma raça privilegiada, os frutos doirados da justiça!

Homero Senna. Uma voz contra a injustiça: Rui Barbosa e o caso Dreyfus. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987, pp. 25-40.

[1] N.S.: À porta fechada.
[2] N.S.: Não se fala quando se está fardado.
[3] N.S.: Besta humana.
[4] N.S.: Velho esperto.
[5] N.S.: “Fomos traídos”.