[São Paulo, janeiro de 1949]

Você pertence a uma geração teatral mais feliz que as anteriores. Em geral, o destino de cada um de nós está condicionado a uma série de circunstâncias externas. Mas, no teatro, arte escrava de um número tão grande de fatores, inclusive econômicos, arte tão dependente do grande público, arte coletiva poderíamos dizer, isso é ainda mais verdade. Todos nós, que estamos li­gados de uma maneira ou de outra ao teatro, não iremos decidir sozinhos do nosso futuro. Se o teatro se elevar, subiremos com ele. Caso contrário, se permanecer na posição inferior atual, não passaremos de tristes e incompreendidos maníacos, desses que cultivam carinhosamente, humilde­mente, alguma pobre arte esquecida de todos. Ora, a nossa geração, no que concerne ao teatro, parece ter surgido à luz do dia num momento privilegiado. Pelo menos, não tem havido na histó­ria do teatro brasileiro muitas ocasiões como esta, tão promissora, tão amplamente aberta para o futuro, tão rica de perspectivas.

O mal dos nossos atores — quem o ignora? — tem sido o de lutar contra um meio que lhes frustra sistematicamente as melhores possibilidades de progresso. Se os que vieram antes de nós pouco fizeram — e esta é a verdade — não é o caso de nos mostrarmos impacientes. Na maioria das vezes, o que eles têm de bom devem a si mesmos. O que têm de mau, ao ambiente, a esse nosso ambiente teatral tão abandonado pelas outras artes, tão pobre e vazio de cultura, capaz de tolher o crescimento da mais sólida vocação. Pois, agora, é esse mesmo ambiente que começa a se modificar. Ainda é cedo para considerarmos definitivas algumas poucas conquistas. Mas a presen­ça, rica de ensinamento e estímulo, de vários atores e encenadores europeus entre nós, o núme­ro de atores novos que surgem e se firmam dia a dia, a frequência e o entusiasmo dos grupos amadores, a atenção apaixonada da imprensa, dos escritores, e até do público, desperto final­mente para o teatro, tudo parece indicar que estamos de fato no início de um grande movimento, cuja expansão ninguém pode prever até onde chegará. O jovem ator já não entra mais no pal­co, como outrora, só e desamparado. Há mestres para orientá-lo, há um público entusiasta para estimulá-lo, e até algumas escolas dramáticas, realmente dignas desse nome, começam a despontar.

Tal é o quadro que você tem diante de si. Se as nossas previsões se confirmarem — e até lá a melhor atitude de ação é a de um otimismo que, pelo excesso, não exclua o espírito crítico — se não falharem as nossas esperanças, o futuro dependerá somente de você mesma, do seu esforço. E, num certo sentido, ninguém poderá ajudá-la, pois a técnica artística não se recebe feita das mãos dos outros: é o resultado de um penoso trabalho individual, apenas facilitado, tor­nado viável, pelo estímulo exterior a que me referia.

Não é sobre a técnica, no entanto, que desejava falar, porque se ela é muito, muitíssimo, não é tudo no teatro, como tanta gente imagina. O melhor ator nem sempre é o de maior capacidade imitativa, o mais maleável, o mais pronto a se transformar, se bem que essa plasticidade seja uma das pedras de toque da arte de represen­tar. É que há outro elemento, mais imponderável e fugidio talvez, não menos importante: a per­sonalidade. O ator não é como uma cera obediente que se limita a encher os moldes propos­tos pela imaginação do autor. Ao contrário, todo ator. em cada criação, dá alguma coisa de si. Deixa transparecer algo da sua própria realidade. Sarah Bernhardt[1]ou Eleonora Duse[2] não foram grandes artistas porque representavam melhor, no sentido de viver mais fielmente vidas imaginá­rias, personalidades fictícias. Foram grandes, sobretudo, porque emprestavam a cada personagem a riqueza de sua própria personalidade, essa riqueza impossível de traduzir em palavras mas que se sente de imediato, pela presença, intuitivamente.

Ora, a personalidade não é um dom ex­clusivo da natureza: é possível cultivá-la, pela reflexão, pela vida do espírito. Não creio, por exemplo, que a superioridade do teatro europeu sobre o nosso se explique de preferência pela técnica. A diferença maior é de cultura, faltando aos nossos atores, antes de mais nada, um certo substrato de leituras, um certo lastro de experiências artísticas, que dê peso e profundidade às suas criações.

Não julgue, como dizem muitos, que a literatura nos afaste da vida. Isso seria verdade se ela não passasse de um jogo do espírito, mais ou menos gratuito. A verdade, contudo, é bem outra. Colocando diante dos nossos olhos, concretamente, mil possibilidades diversas de vida, fazendo-nos enxergar a realidade através de prismas sempre diferentes, a literatura não só nos pro­porciona uma variedade de experiências que de outra forma não poderíamos alcançar, como alar­ga a nossa capacidade de compreensão humana, obrigando-nos a sair de nós mesmos, a abando­nar os nossos estreitos pontos de vistas individuais. Se você a compreender devidamente, como um esforço para estudar o homem em toda a sua complexidade, em toda a sua riqueza infinita, verá que a literatura, as artes em geral, só pode predispor o ator para a sua missão, dando-lhe, a par de um conhecimento por assim dizer direto de psicologia, aquela capacidade de comunicação humana, aquela facilidade em desposar personalidade e pontos de vista alheios que definíamos como um dos elementos básicos da criação no teatro.

A verdade, portanto, é que tudo que você ler, as músicas que ouvir, os quadros que admirar, tudo o que você sentir, tudo isso irá se refletir misteriosamente, sem que você o perceba, na sua arte, refinando-a, aprofundando-a psicologicamente, tornando-a, ao mesmo tempo, mais sua e mais universal.

Não é apenas a falta de cultura, entretanto, que você deve temer. A sua vigilância deve andar alertada, sobretudo, contra uma moléstia que invadiu insidiosamente a nossa civilização, ameaçando-a seriamente, e que se chama espírito de propaganda. Silone[3]Ig caracterizou-a da seguin­te maneira: “a vida fútil nutre-se de aparência. Quer somente parecer; parecer interessante, inte­ligente, bela, instruída; às vezes quer parecer até boa, altruísta, corajosa. Para as pessoas fúteis, ser não é importante; o importante é parecer”.

Essas palavras, que eu gostaria que você guardasse, só têm um defeito: pecam pelo exces­so de generosidade. A vida fútil, na sua forma mais moderna e atual, não quer parecer inteli­gente, bela ou boa. Quer parecer, somente. Quer aparecer de qualquer forma e a qualquer preço, sob um ângulo favorável, se possível. Desfavorável se não houver outra alternativa. É a sede de propaganda, de publicidade, que é uma das características mais fortes do mundo moderno e que depois de ter avassalado por completo o cinema e o rádio ameaça agora invadir dominadoramente o nosso teatro. É a arte, mais admirada do que qualquer outra nos dias de hoje, de se passar por aquilo que não se é, de se vender mais caro do que se vale. O perigo em tais casos é que começando por enganar aos outros acabamos fa­talmente, através de uma lei bem conhecida, por enganar a nós mesmos. E desse momento em diante, perdido o pé na realidade, está perdida também qualquer possibilidade de progresso ver­dadeiro.

É fato que no teatro, arte de espetáculo, a propaganda pode ser útil na medida em que nos proporciona os meios materiais para realizar o que desejamos. Mas acontece que dessa realidade escorrega-se com muita facilidade para coisa muito diversa, passando-se insensivelmente a cultuar a propaganda pela propaganda, como se ela fosse um fim, e não um meio, como se a aparência valesse em si mesma e por si mesma, como se o que julgam os outros acabasse realmente por nos transformar. Se você, como penso, prefere ser a parecer, nunca aceite como progresso nada que seja meramente exterior, que não modifique, em substância, você mesma, que não seja um triunfo sobre você mesma.

Sei bem que nisto tudo que disse não há no­vidade alguma. Nem o meu intuito foi o de dizer coisas novas. Além da crença de que certas con­siderações gerais, de ordem moral, são muito mais importantes que qualquer detalhe técnico, moveu-me apenas o desejo de ser útil, ainda que a custo de repetir algumas verdades, que nem por serem eternas perdem em serem repetidas.

Decio de Almeida Prado. Seres, coisas, lugares: do teatro ao futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 77-80.

[1] N.S.: Sara Bernhardt (1844-1923),  atriz francesa que se destacou por superior sensibilidade dramática.
[2] N.S.: Eleonora Duse (1858-1924), atriz italiana, inovou a representação nos palcos com o que  chamou de “a eliminação do eu”, para se conectar internamente com a personagem que representava.
[3] Ignazio Silone (1900-1978), escritor e político italiano.