Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, 16 de outubro de 1965
Rachel muito querida,
Os argumentos para a “Fundação do Parque do Flamengo” são poucos, mas creio que decisivos e imprescindíveis.
A minha intenção quando comecei a obra era de obter do Rodrigo M. Franco[1] o tombamento, o que já foi feito por unanimidade apesar do Conselho ter vários inimigos do Carlos,[2] e isto seria para proteger o Parque das centenas de projetos os mais incríveis que me passaram nas mãos, e depois a Fundação para manter o Parque.
O tombamento era imprescindível para que até o final da obra esta mantivesse o critério e a intenção pela qual ela foi feita, e que eram dois: proteger a paisagem, e dar ao povo um dos mais importantes elementos, até hoje completamente ignorados pelas administrações, de uma grande praça na qual ele pudesse descansar, se divertir, e fazer esporte da maneira mais barata possível.
O tremendo sucesso do empreendimento prova a necessidade que havia de um centro desta natureza, na qual a família carioca de poucos recursos pudesse passar o domingo, os dias feriados ou de folga. Fez-se o mínimo de arquitetura para não empanar a vista, fez-se o máximo de divertimentos mas que ao mesmo tempo conservasse a beleza e o caráter do jardim.
O tombamento vai até 100 metros dentro do mar, isto porque apareceram projetos tanto de piscinas flutuantes, quanto de anúncios boiando, como o de uma garrafa gigantesca de whisky de 3 metros de altura, de borracha, nas águas de Copacabana… e que certamente também seria colocada nas águas do Flamengo. Este tombamento teria, se a obra tivesse sido acabada, também a importância fundamental de proteger o caráter e o espírito do projeto, isto é, que não se pudesse mudar o estilo da arquitetura, e nos cobrir de vergonha com a perspectiva de na mesma área se mudar de estilo, passando do moderno ao colonial ou ao estilo Quitandinha etc.
Como a obra não foi terminada, creio que o perigo que ela corre é imenso porque tombou-se o que existe, e se tombou o que vai haver, mas não foi possível se tombar o estilo na arquitetura do que não existe.
Se perdermos para o Negrão de Lima, a direção do planejamento vai ser uma vergonha nacional, e uma demonstração de repercussão internacional da nossa incapacidade de acabarmos o que fazemos, de mantermos um critério ou uma intenção social e estética através de uma mudança de administração. Esta aceitação e aprovação estrangeira já existem através da Internacional Recreation da Unesco, que tem publicado fotografias do Parque com os maiores elogios, cartas do diretor desta organização, e fotos dos demais aeromodelismo e modelismo naval em revistas inglesas e francesas. O Patrimônio Histórico não tem forças para deter a administração do Negrão,[3] veja o caso do Edifício que depois de 7 anos de construído é que o Patrimônio conseguiu que se tirassem os 4 andares de cima!)
É evidente que a paisagem do Parque com o Pão de Açúcar é hoje uma das mais vistosas do Rio, e será sempre intensamente publicável quando se falar na cidade — e, ao contrário das outras obras, esta ficará mais bonita ainda com o correr dos anos, quando as árvores crescerem… As outras obras tendem a ficarem obsoletas e deterioradas.
A ideia da Fundação é evidentemente pensada para defender e manter o Parque. Uma Fundação também será de maior economia para a administração porque só uma direção centralizada será capaz de conhecer as despesas de manutenção e com isto regular os gastos.
Dada a complexidade do projeto, o Parque realmente pertence a todas as Secretarias, e ao mesmo tempo é pequeno demais para que ele dê margem a pedido de novas verbas especializadas, só ficando então uma chance de desperdício e de má regulagem das despesas. Como pertence a todas as Secretarias e aos seus diversos Departamentos tudo na mesma área, a desordem vai ser intensa, já que os diversos caminhamentos burocráticos são de velocidade diferente, e os funcionários se encontraram em situações impossíveis de concordâncias e entendimentos.
Outro argumento para a Fundação é o fato de que as Secretarias terão de onerar com impostos e taxas o que cair na faixa destes impostos. Há pouco tempo “salvamos” as passagens do trenzinho de um imposto de 17% — o que daria o resultado de aumentar as passagens, que nós queremos manter baixas para ficar ao alcance de mais gente.
É pela primeira vez, Rachel, que se dá alguma coisa de graça à população. Já é tempo de se pensar em gente pobre, em dar ao menos um local, ou o que fazer nos poucos dias de descanso que eles têm. Sempre me horrorizou ver gente moça nos domingos, conversando em grupinhos nas portas das casas, andando ao léu nas ruas, sem ter aonde ir, sem ter nada para se refazer da semana de trabalho, sem ter elementos para criar um sentimento comunitário que dá um esporte em comum, uma atividade qualquer coletiva, e como é que se pensa criar uma nação de gente que vive, pensa e trabalha sozinha? O que é que faz a grandeza dos Estados Unidos? É o sentimento de comunidade. É o respeito ao governo, porque lá eles sabem que o governo é constituído para servir ao povo.
Uma Fundação fará o Parque funcionar porque será um grupo organizando as diversas atividades, e se este Grupo de Trabalho for mantido, poderá acabar o projeto. O argumento a favor de permanência do mesmo Grupo é o mesmo do que a razão óbvia pela qual o presidente deseja (e nós também) a continuação do Roberto Campos, até que as diretrizes por ele tomadas possam dar os resultados esperados. Pensar-se que tanto o Roberto Campos e a sua equipe quanto eu e a minha equipe podem ser substituídos no meio da obra é uma tolice. As asneiras ditas pelo Carlos em resposta aos magníficos exposés do Roberto Campos provam isto. Quando o presidente diz que “os cemitérios estão cheios de insubstituíveis”, ele está falando de coisa muito diferente.
Até hoje a obra está ao ponto da carrosserie, e o motor que a fará andar está para ser feito, e, se não formos até o fim, a obra ficará prejudicada e dirão que a culpa é nossa, e a população ficará mais uma vez roubada.
A manobra de Levy Neves de substituir uma autarquia pela Fundação é clara. Vai ser o Secretário de Turismo do Negrão e vai incorporar a autarquia ao Turismo, dando este presente de boas nomeações para o Negrão. Se o jogo dele não puder ser atalhado, a Fundação não poderá ser feita, e o Carlos não terá tempo de me dar um mandato. Os argumentos do Levy Neves contra a Fundação são naturalmente de má-fé, porque a Fundação que pedimos terá um ministro do Tribunal de Contas, e todos os requisitos exigidos por lei. Não tenho nenhuma vocação para viver ou trabalhar fora da lei.
Tenho poucas esperanças de salvar o trabalho que fizemos durante estes cinco anos, ou melhor, que eu fiz, já que você sabe da coisa como ela realmente é. Perdi amigos, perdi dinheiro, perdi tempo, porque antes tivesse deixado fazer aquele projeto idiota de milhões de pistas cortando a frente do mar, do que fazer uma obra que só vai provar aos estrangeiros a nossa sinistra leviandade de gastar bilhões em projetos inacabados, e mais uma vez mostrar à população que os governos não funcionam, que a democracia é coisa boa nos Estados Unidos, mas aqui representa promessas e mais nada.
É pena que você não tivesse visto a campanha (toda de graça, naturalmente) que conseguimos para a Fundação. Televisão, jornais etc. Vou lhe mandar os recortes. Graças ao alheamento do Carlos ao projeto, pode-se fazê-la sem falar nele, já que ele não aparece nem fala no Parque. Mas deve aparecer amanhã, infelizmente… (Acabo de falar com o Corção[4] ao telefone e de reconquistá-lo para o Castello Branco.)[5]
Acabo de chegar do Parque, onde fui assistir ao ensaio do Teatro de Marionetes. Naturalmente tinha milhares de pessoas por todo lado e o Teatro ficou superlotado em poucos minutos, e como sempre nenhum policial à vista. São os meus arquitetos que policiam e fazem de tudo nestas horas, além do que fiscalizam os fiscais da Sursan[6] e dirigem os operários, e os jardineiros e guiam caminhões e tratores. Não há nada como o amor.
Estou acabando, Rachel. Tive uma violenta briga com o Carlos e acabei desligando o telefone. Espero que com isto o Big Brother não vá às inaugurações e nos deixe em paz para os festejos.
Creio que não tenho mais argumentos a lhe apresentar. Não sei mais como defender este Parque. Não posso sair gritando pelas ruas, pedindo a todos que nos deixem acabar o que começamos, e que lembrem de nós, dentro daqueles barracões tão quentes no verão e tão frios no inverno, onde até o café é pago por nós mesmos, sem outra intenção e outro desejo senão fazer o melhor possível, o mais certo possível, o que melhor sirva a esta pobre população.
Apesar da confiança que tenho em você e no nosso presidente, não tenho muita fé nesta sua empreitada. Mesmo que a sua literatura seja tão magnífica como em “Coragem”[7] creio que justamente o único defeito do Castello é ser fino demais neste jogo bruto de “políticos” primários e antipatriotas… porque política it is a very much more precise thing that is commonly supposed; it is essential to genuine freedom; it is unknown in any but advanced and complex societies etc. (In Defense of Politics do Bernard Ericks)
De manhã.
Nada vai adiantar Rachel — senão o presidente. É isto que está claro depois de todas as conversas que tive com muitas pessoas ontem e hoje. Uma autarquia no Parque é bom demais para o Negrão com os empregos e a projeção que pode dar aos que promovem festas sempre certamente assistidas por milhares de pessoas… Como você vê, a “brincadeira” já recomeçou. E de grão em grão a galinha enche o papo. Se o presidente não “segurar” nem um Parque, não vai segurar o Brasil inteiro.
Um abraço desolado,
Lotta
Arquivo Rachel de Queiroz/ Acervo IMS
[1] N.S.:Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898-1969). Chefiou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde sua fundação, em 1937, até 1967.
[2] N.S.: Carlos Lacerda (1914-1967). Governador do então Estado da Guanabara de 1960 a 1965.
[3] N.S.: Francisco Negrão de Lima (1901-1981). Governador do então Estado da Guanabara de 1965 a 1971, cujo mandato foi marcado por intensa radicalização política. Sua eleição representou uma derrota para o governo militar instaurado no Brasil em 1964.
[4] N.S.: Gustavo Corção (1896-1878). Escritor e pensador católico que apoiou a derrubada do presidente João Goulart em favor da instalação do governo militar, em 1964.
[5] N.S.: Humberto de Alencar Castello Branco (1900-1967). Presidente do Brasil de 1964, com a instauração do golpe militar, a 1967.
[6] N.S.: Superintendência de Urbanização e Saneamento
[7] N.S.: Crônica de Rachel de Queiroz publicada em O Cruzeiro, em 13 de julho de 1965.