São Paulo, 22 de julho de 1991

Maria Lúcia,

Como nunca li outra crítica sua, acredito que você seja principiante nessa função. No sentido de ajudá-la envio-lhe estas dicas para trabalhos futuros:

1 – O crítico precisa gostar de teatro, é imprescindível, claro, mas deve também gostar de ir ao teatro e ver espetáculos de teatro, o que é muito raro.

2 – Se ele gosta de teatro deve mostrar sua aprovação cada vez que um elenco escolhe textos significativos e importantes da literatura dramática, principalmente se eles são levados sem ousadias que os desfigurem.

3 – Deve procurar informar-se sobre quem é quem no espetáculo, qual o grau de experiência e cultura teatral que têm os elementos envolvidos na produção do espetáculo para não escrever bobagens.

4 – Deve ler a peça antes de escrever a crítica e, se não conseguir enten­dê-la, deve abster-se de fazer julgamentos absurdos tipo: “A proposta de Pirandello é: a “verdadeira” realidade é a da cena, não a da vida” num tra­balho sobre Seis personagens à procura de um autor, peça riquíssima em teses e propostas e em que o Pai diz textualmente ao Diretor: “A ilusão por criar é nossa única realidade”. Pirandello não usa na peça o adjeti­vo “verdadeira” para qualificar qualquer realidade discutida. Mesmo por­que uma de suas superconhecidas propostas é a de que toda realidade é relativa. Os temas “realidade e ficção” – não existência da verdade – im­possibilidade de comunicação entre os homens, etc. – são o óbvio em toda a sua obra.

5 – O crítico deve procurar saber quem é o autor, qual a sua importância dentro do teatro. Fazendo isso, fica sabendo que Pirandello não se des­taca pela originalidade de suas ideias filosóficas. Como pensador ou filó­sofo, nada inovou. Inovou, sim, em teatro. Teve a ousadia de colocar drama­ticamente temas filosóficos em discussão, sem dar-lhes a aparência de conferências ou aulas de filosofia. Iluminou, sim, o ser humano, mostrando aspectos eternos do homem, de uma forma inteiramente original, com infinita poesia.

Maria Lúcia, se você gosta de teatro, se você gosta de ir ao teatro, se você sabe quem é quem no espetáculo, se você leu a peça e entendeu, e se você sabe quem é Pirandello, como é que escreveu tanta bobagem?

Você se preocupou com o cachorrinho, Maria Lúcia!

A filha de uma amiga cria um quati. Dá-lhe banho diariamente desde que era pequenino. É um custo impedi-la à noite de levar o quati para o quarto. O pintor Frank Schaeffer teve durante anos como animalzinho de estimação uma periquita. Levou-a até para a Europa e Estados Unidos. To­do o mundo sabe disso. Porque é que o coelhinho lindo se tornou digno de menção para você? Bobagem, Maria Lúcia!

Uma informação útil para você é a seguinte: não há roupas pré-determinadas para ensaio, normalmente. Em geral, os atores vão ensaiar como qui­serem. Quando eles têm um compromisso após o ensaio, vão com a roupa apro­priada para esse compromisso. Não causa espanto nenhum ver um ator chegar para o ensaio de terno e gravata, principalmente o ator mais importante da companhia. Vê-se logo que tem uma outra atividade após o ensaio. Bobagem sua (numa crítica, Maria Lúcia!) perguntar: “que ator ensaia de terno?”.

É vontade gratuita de achar defeitos e apontar defeitos. Ou você acha que para Pirandello o cachorro era fundamental mesmo?

Maria Lúcia, não fiz adaptação nenhuma, meu bem. Leia a peça. O autor pede uma ceninha inicial alegre e viva, sugere que um ator leia um pedaço de jornal, que outro toque piano numa cena ad libitum.[1] Para a minha cena inicial, que dura três minutos apenas até a entrada do Diretor, tomei nota de frases que ouvi em ensaios e coloquei-as em forma de diálogo. Para seu conhecimento, a mínima e desimportante discussãozinha que se estabelece não é só sobre expressão corporal versus voz, mas também sobre teatro expe­rimental e teatro profissional e se afirma que: “Sem teatro experimental, sem vanguarda, o Teatro teria morrido há séculos”. Acho que essa frase você não ouviu, não é? A discussão termina com um ator pedante dizendo uma fra­se bestialógica que eu tirei de um livro de um professor de teatro de São Paulo.

Pena que você não tenha prestado atenção, Maria Lúcia.

As pessoas inteligentes que têm visto meu espetáculo louvam-lhe justa­mente a “clareza” da definição conceitual que você nega e com a qual me preocupei precipuamente.

Você elogiou em minha interpretação a “divisão entre o raisonneur[2] e o homem angustiado”. Por que não creditou isso à direção? Você não deve ter assistido a outras montagens da peça com grandes atores e diretores bra­sileiros, franceses e italianos em que essa divisão simplesmente não apare­cia. Ela só ficou clara neste espetáculo, meu bem.

Em 1966 Tônia e eu fizemos Seis personagens à procura de um autor em Lisboa. Em 1970 um grande elenco francês em excursão pela Europa levou es­se espetáculo até lá. Um crítico lisboeta escreveu textualmente: “Que sau­dades de Paulo Autran!” Não é simpático?

Outra coisa: a Enteada é um personagem frenético, sim, e dilacerante, sim, mas não, como você diz: “entre o senso de justiça e a angustiante carnalidade”. Preste mais atenção ao texto, meu bem.

E os outros atores, meu bem? Você acha que não são dignos de observa­ções suas?

Quanto à ousadia, você já pensou que ousadia é em nossos tempos mon­tar um texto considerado não comercial, com 16 pessoas em cena?

Quanto à ausência de “arroubos criativos”, estou de acordo com você. Acho que Pirandello é mais importante que qualquer “arroubo criativo”.

Infelizmente não posso concordar com a frase final de sua crítica. Seis personagens… não é indestrutível. Tem sido destruído muitas vezes por “arroubos criativos” de diretores incompetentes. Há poucos anos, com bom elenco e bom diretor foi um fracasso no Rio.

Comunico-lhe que o espetáculo tem tido um grande público, que se en­tusiasma todas as noites.

Um abraço carinhoso do

Paulo Autran

P.S.: – Você telefonou ao meu administrador pedindo dois lugares bons e avisou que se fossem maus talvez você ficasse mal-humorada ao escrever a crítica. Depois foi sozinha. Você ficou mal-humorada porque não gos­tou do lugar ou porque foi sozinha?

Paulo Autran

Arquivo Paulo Autran / Acervo IMS

[1] N.S.: “À vontade”. Em teatro, de forma improvisada.
[2] N.S.: Pessoa que reflete, raciocina.