Salvador, 10 de agosto de 1549

Ao doutor Navarro, mestre em Coimbra,

Gratia et pax Domini Nostri Jesu Christi sit semper nobiscum. Amen.[1]

Pensando eu muitas vezes na graça que o Senhor me fez, mandando-me a estas terras do Brasil para dar princípio ao conheci­mento e louvor do seu santo nome nestas regiões, fico espantado de ter sido para esse fim eleito, sendo eu a escória de toda a Universi­dade; mas, além da divina graça, cuido que o ter sido discípulo da doutrina e da virtude de vossa reverendíssima e as suas orações me impetraram esta misericórdia de Deus, qui potens est de lapidibus istis suscitare [filios] Abraæ;[2] e porém é de razão que eu dê con­tas a vossa reverendíssima do que o Senhor começa a obrar nesta sua nova vinha, a qual talvez queira estender a mari usque ad mare, et a flumine usque ad terminos orbis terrarum;[3] para que vossa reverendíssima louve por sua parte ao Senhor, a quem só se deve toda a glória e honra.

Depois que partimos de Portugal, o que foi em 1º de feve­reiro de 1549, toda a armada trouxe-a Deus a salvamento; sempre com ventos prósperos e de tal arte que chegamos à Bahia de Todos os Santos dentro de 56 dias, sem que sobreviesse nenhum con­tratempo e antes com muitos outros favores e graças de Deus, que bem mostrava ser sua a obra que agora se principiou.

Desde logo se fez a paz com o gentio da terra e se tomou conselho sobre onde se fundaria a nova cidade, chamada do Salvador, onde muito ainda obrou o Senhor, deparando logo muito bom sítio sobre a praia em local de muitas fontes, entre mar e terra e circundado das águas em torno aos novos muros. Os mesmos índios da terra ajudam a fazer as casas e as outras coisas em que se quei­ra empregá-los; pode-se já contar umas cem casas e se começa a plan­tar canas-de-açúcar e muitas outras coisas para o mister da vida, porque a terra é fértil de tudo, ainda que algumas, por demasia­do pingues,[4] só produzam a planta e não o fruto. É muito salu­bre e de bons ares, de sorte que sendo muita a nossa gente e muito grandes as fadigas, e mudando da alimentação com que se nu­triam, são poucos os que enfermam e estes depressa se curam. A re­gião é tão grande que, dizem, de três partes em que se dividisse o mundo, ocuparia duas; é muito fresca e mais ou menos tempera­da, não se sentindo muito o calor do estio; tem muitos frutos de diversas qualidades e muito saborosos; no mar igualmente muito peixe, e bom. Semelham os montes grandes jardins e pomares, que não me lembra ter visto pano de rás[5] tão belo. Nos ditos montes há animais de muitas diversas feituras, quais nunca conheceu Plínio, nem deles deu notícia, e ervas de diferentes cheiros, muitas e diversas das de Espanha; o que bem mostra a grandeza e beleza do Criador na tamanha variedade e beleza das criaturas.

Mas é de grande maravilha haver Deus entregue terra tão boa, tamanho tempo, a gente tão inculta que tão pouco o conhece, porque nenhum Deus têm certo, e qualquer que lhes digam ser Deus o acreditam, regendo-se todos por inclinações e apetites sensuais, que está sempre inclinado ao mal, sem conselho nem pru­dência. Têm muitas mulheres, e isto pelo tempo em que se conten­tam com elas e com as dos seus, o que não é condenado entre eles. Fazem guerra, uma tribo a outra, a dez, quinze e vinte léguas, de modo que estão todos entre si divididos. Se acontece aprisionarem um contrário na guerra, conservam-no por algum tempo, dão-lhe por mulheres suas filhas, para que o sirvam e guardem, depois do que o matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram por ali perto, e se deles ficam filhos, os comem, ainda que sejam seus sobrinhos e irmãos, declarando às vezes as próprias mães que só os pais e não a mãe têm parte neles. É esta a coisa mais abominável que existe entre eles. Se matam a um na guerra, o partem em pedaços, e depois de moqueados os comem, com a mesma solenidade; e tudo isto fazem com um ódio cordial que têm um ao outro, e nestas duas coisas, isto é, terem muitas mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua honra. São estes os seus desejos, é esta a sua felicidade. O que tudo herdaram do primeiro e segundo homem, e aprenderam daquele qui homicida erat ab initio.[6] Não se guerreiam por avareza, porque não possuem de seu mais do que lhes dão a pesca, a caça e o fruto que a terra dá a todos, mas somente por ódio e vingança, sendo tão sujeitos à ira que, se acaso se encontram no caminho, logo vão ao pau, à pedra ou à dentada, e assim comem diversos animais, como pul­gas e outros como este, tudo para vingarem-se do mal que lhes cau­sam, o que bem deixa ver que não tomaram ainda aquele conselho evangélico de pagar o mal com o bem. Quando morre algum deles, enterram-no em posição de quem está assentado, em frente lhe põem de comer com uma rede e ali dormem, e dizem que as almas vão pelos montes e ali voltam para comer. Têm grande no­ção do Demônio e têm dele grande pavor e o encontram de noite, e por esta causa saem com um tição, e isto é o seu defensivo.

Sabem do dilúvio de Noé, bem que não conforme a verdadeira história; pois dizem que todos morreram, exceto uma velha que escapou em uma árvore.

Têm notícia igualmente de são Thomé e de um seu compa­nheiro e mostram certos vestígios em uma rocha, que dizem ser deles, e outros sinais em São Vicente, que é no fim desta costa. Dele contam que lhes dera os alimentos que ainda hoje usam, que são raízes e ervas, e com isso vivem bem; não obstante dizem mal de seu companheiro, e não sei por que, senão que, como sou­be, as flechas que contra ele atiravam voltavam sobre si e os ma­tavam. Muito se admiravam de ver o nosso culto e veneração que temos pelas coisas de Deus. Entre eles, os que são amigos vivem em grande concórdia e amor, observando bem aquilo que se diz: Amicorum omnia sunt communia.[7] Se um deles mata um peixe, todos comem deste e assim de qualquer animal. Nesta terra alguns há que não habitam casas, mas vivem pelos montes; dão guerra a todos, e de todos são temidos. Isto é o que me ocorre sobre a terra e sobre a gente que a habita e que é coisa muito para lastimar e se ter compaixão dessas almas.

Falarei agora da porta que Nosso Senhor se dignou de abrir nestes poucos meses para escolher dentre eles os que foram pre­destinados; porém começamos a visitar as suas aldeias, quatro companheiros que somos, a conversar familiarmente, e a anunciar-lhes o reino do céu, se fizerem aquilo que lhes ensinarmos; e são estes aqui os nossos bandos. Convidamos os meninos a ler e escre­ver e conjuntamente lhes ensinamos a doutrina cristã e lhes pregamos para que, com a mesma arte com que o inimigo da natureza venceu o homem dizendo: Eritis sicut Dii scientes bonum et malum,[8] com arte igual seja ele vencido, porque muito se admiram de como sabemos 1er e escrever e têm grande inveja e vontade de aprender e desejam ser cristãos como nós outros. Mas somente o impede o muito que custa tirar-lhe os maus costumes deles, e nisso está hoje toda a fadiga nossa.

E já por glória do Senhor nestas aldeias que visitamos em tor­no à cidade, muitos se abstêm de matar e de comer carne humana; e se algum o faz, fica segregado daqui.

Onde quer que vamos somos recebidos com grande boa vonta­de, principalmente pelos meninos, aos quais ensinamos. Muitos já fazem as orações e as ensinam aos outros. Dos que vemos estarem mais seguros, temos batizado umas cem pessoas pouco mais ou me­nos: começou isto pelas festas do Espírito Santo, que é o tempo ordenado pela igreja: e deve haver uns seiscentos ou setecentos catecúmenos prontos para o batismo, os quais estão bem preparados em tudo.

E alguns vêm pelos caminhos a nosso encontro, perguntando-nos quando os havemos de batizar, mostrando grande desejo e prometendo viver conforme o que lhes aconselhamos; costumamos ba­tizar marido e mulher de uma só vez, logo depois casando-os, com as admoestações daquilo que o verdadeiro matrimônio reclama; com o que se mostram eles muito contentes, prestando-nos muita obe­diência em tudo quanto lhes ordenamos. Dentre muitas coisas re­ferirei uma que bastante me maravilhou, e foi que ensinando um dia o padre João de Azpilcueta[9] os meninos a 1er e a fazer o sinal da cruz, e tendo os ditos meninos certas pedras de várias cores nos lá­bios, que é uso trazer furados, e muito estimam, embaraçando as pe­dras de fazer-se o sinal da cruz, veio a mãe de um deles e para logo tirou a pedra dos lábios de seu filho e atirou ao telhado; de repen­te os outros fizeram o mesmo: e isto foi logo quando começamos de ensinar. Outra vez descobriu o mesmo padre em uma aldeia que cozinhavam o filho de um inimigo, a fim de comerem-no: e porque fossem repreendidos, soubemos mais tarde que o enterra­ram e o não quiseram comer.

Outras coisas semelhantes se têm dado, que seria longo enumerar, e a maior parte delas com o dito padre que anda sempre pelas aldeias e aí dorme e come para ter mais facilidade em pre­gar à noite, porque a esta hora é que estão juntos na aldeia e mais descansados: e já sabe a língua deles que, ao que parece, muito se conforma com a biscainha,[10] de modo que com eles se entende; e a todos nos leva vantagem, que parece Nosso Senhor ter feito especial graça à nação de Navarra, em acudir aos infiéis como fa­zem mestre Francisco nas outras Índias do rei de Portugal e este padre nas terras do Brasil: onde corre com tanto fervor de uma terra a outra, que parece abrasar os montes com o fogo da caridade.

Em duas das principais aldeias de que tem cargo, fizeram-lhe uma casa onde esteja e ensine aos catecúmenos; em outra aldeia, também próximo a esta cidade, fizemos uma casa a modo de ermi­da, onde um de nós está incumbido de ensinar e pregar aos bati­zados de pouco, e a outros muitos catecúmenos, que nela vivem.

Os principais da terra batizaremos em breve, que outra coi­sa não se espera senão que tornem a suas mulheres, que têm es­perança em que conservem a fidelidade: porque é costume até agora entre eles não fazerem caso do adultério, tomarem uma mu­lher e deixarem outra, como bem lhes parece e nunca tomando al­guma firme. O que não praticam os outros infiéis de África e de outras bandas, que tomam mulher para sempre e se a abandona é mal visto: o que não se usa aqui, mas ter as mulheres simples­mente como concubinas.

De muitas partes somos chamados para irmos ensinar as coi­sas de Deus e não podemos chegar, porque somos poucos; e certo, creio que em todo o mundo não se nos depara terra tão disposta para produzir o fruto como esta, onde vemos almas perecerem por se não poder remediá-las: em falta, vamos lhes acendendo a vontade de ser cristãos, para que se morrerem, neste comenos, enquanto dura o catecismo, deles Deus haja misericórdia. Aos que amam a Deus e desejam a sua glória não sei como lhes sofre a pa­ciência de se não embarcarem logo e virem cavar nesta vinha do Se­nhor que tão espaçosa é, e que tão poucos operários possui. Poucas letras bastariam aqui, porque tudo é papel branco, e não há que fazer outra coisa, senão escrever à vontade as virtudes mais neces­sárias e ter zelo em que seja conhecido o Criador destas suas criaturas.

Estando tudo nestes termos e em tão bom princípio, pelos pou­cos meses que aqui estamos, esforçou-se o inimigo da natureza hu­mana (como sói sempre fazer) em impedir o bom sucesso da obra: e assim determinou que a sete ou oito léguas daqui matassem um cristão da armada em que viemos: o que nos pôs em perigo de guerra e nos acharia, à nossa gente, em má ocasião, desprevenidos e mal fortificados na nova cidade. Mas quis o Senhor, que do mal sabe tirar o bem, que os mesmos índios trouxessem o homicida e apresentaram-no ao governador, o qual logo o mandou colocar à boca de uma bombarda e foi assim feito em pedaços: isto pôs grande medo aos outros todos que estavam presentes; e os nossos cristãos se abstiveram de andar pelas aldeias, o que foi serviço de Deus, por evitarem os escândalos que aos índios davam, andando pelas suas terras.

Quando viajamos nós outros da Companhia, nunca nos aban­donam, e antes nos acompanham para onde se queira, maravilha­dos com o que pregamos e escutando com grande silêncio.

Dentre outras coisas, recordo-me que por meio de um menino língua eu lhes dizia, uma noite em que eu pregava ao luar (não lhes podendo ensinar mais), que tivessem fé em Jesus Cristo, e que ao deitar e ao levantar o invocassem dizendo: “Jesus, eu te encomendo a minha alma”, e depois que deles me parti, andando pelos caminhos, notei a alguns que diziam em voz alta o nome de Jesus, como lhes havia eu ensinado, o que me dava não pequena consolação. E coisa admirável é quanto por sua bondade e consolação o Senhor todos os dias nos comunica e ainda mais avantajadamente aos outros irmãos, porque visitam mais vezes aldeias que eu, e mais o merece a sua virtude.

Um dos que batizamos veio a nós, dizendo por acenos e de modo que o compreendíamos, que naquela noite estivera com Deus no Paraíso, com grande alegria; e assim nos vinha contar muito contente.

Uma coisa nos acontecia que muito nos maravilhava a princí­pio, e foi que quase todos os que batizamos caíram doentes, quais do ventre, quais dos olhos, quais de apostema: e tiveram ocasião os seus feiticeiros de dizer que lhes dávamos a doença com a água do batismo e com a doutrina a morte; mas se viram em breve desmascarados, porque logo todos os enfermos se curaram. Quis por ventura o Senhor a estes seus filhos perfilhados em seu sangue pro­var-lhes desde cedo e ensinar-lhes que é preciso sofrer e que esta é a mezinha com que se purgam os eleitos do Senhor. Procurei encontrar-me com um feiticeiro, o maior desta terra, ao qual chama­vam todos para os curar em suas enfermidades; e lhe perguntei em virtude de quem fazia ele estas coisas e se tinha comunicação com o Deus que criou o céu e a terra e reinava nos céus ou acaso se comunicava com o Demônio que estava no Inferno? Respondeu-me com pouca vergonha que ele era Deus e tinha nascido Deus e apresentou-me um a quem havia dado a saúde, e que aquele Deus dos céus era seu amigo e lhe aparecia frequentes vezes nas nuvens, nos trovões e raios; e assim dizia muitas outras coisas. Es­forcei-me vendo tanta blasfêmia em reunir toda a gente, gritan­do em altas vozes, mostrando-lhe o erro e contradizendo por gran­de espaço de tempo aquilo que ele tinha dito: e isto, com ajuda de um língua que eu tinha muito bom, o qual falava quanto eu dizia em alta voz e com os sinais do grande sentimento que eu mostrava. Finalmente ficou ele confuso, e fiz que se desdissesse de quanto havia dito e emendasse a sua vida, e que eu pediria por ele a Deus que lhe perdoasse: e depois ele mesmo pediu que o ba­tizasse, pois queria ser cristão, e é agora um dos catecúmenos. Vi entre os que estavam presentes alguns homens e mulheres como atônitos daquilo que eu falava, das grandezas de Deus. Estas e outras coisas obra o Senhor por nosso ministério inter gentes.[11] Vossa Reverendíssima, pois que tem o zelo da divina honra, nos ajude com as suas orações e escrevendo-nos o que Deus lhe faça sentir.

E assim fico pedindo a benção do Pai e Mestre em Jesus Cris­to Senhor Nosso.

De vosso reverendíssimo padre servo no Senhor.

Manuel da Nóbrega. Cartas do Brasil: 1549-1560. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931, pp. 88-96.

[1] N.S.: “A graça e amor de Nosso Senhor Jesus Cristo seja sempre em nosso favor. Amém”.
[2] N.S.: “que pode ressuscitar os filhos de Abrão dessas sepulturas”.
[3] N.S.: “de mar a mar, e do rio até os limites do orbe terrestre”.
[4] N.S.: Produtivas.
[5] N.S.: Tapeçaria ornamental, com desenhos em cores brilhantes, criada em Arras, na França.
[6] N.S.: “que era homicida desde o início”.
[7] N.S.: “Todas as coisas dos amigos são comuns entre eles”.
[8] N.S.: “Sereis assim como os deuses cientes do bem e do mal”.
[9] N.S.: Sobrinho do jesuíta Martín de Azpilcueta Navarro. João de Azpilcueta ficou conhecido por ter sido um dos primeiros jesuítas a dominar a língua tupi.
[10] N.S.: Dialeto do basco.
[11] N.S.: “entre os povos”.