Itatiaia, 13 de janeiro de 1935

Minha mãe,

Só agora me sinto com um pouco mais de coragem para me sentar e escrever. Estava espatifado. Depois de ter passado quase que toda a noite em claro e de ter feito uma viagem em que a maior preocupação foi “não formar ambiente de enterro”, cheguei ao sítio mais morto do que vivo, sombrio como o Corcovado em noite de chuva. Já agora tudo vai melhor. Uma noite dormida na varanda, ao fresco, com uma boa dose de Neurinase, me tiraram as rugas da testa e os horizontes, se ainda não estão inteiramente claros, já, pelo menos, não mostram a carranca dos últimos dias.

Não consegui ainda me interessar por nenhuma das coisas que trou­xe para fazer — a memória sangra um pouco ainda, mas os pulmões e a pele já estão pegando o antigo jeito e, de qualquer modo, é agradável estar passeando o meu corpo cansado por esse sol, respirando ar cada dia mais puro.

É difícil estar longe dela [Antônia][1] agora, depois que ela chorou na minha frente — é a primeira mulher fora da família que chora por mim. Apesar de tudo, me fez um tal sermão sobre a coragem que, se talvez não tenha servido a ela própria, foi benéfico para mim, no grau que podia ser.

É bom, é incrível ser amado assim. Principalmente quando esse amor fecha um círculo formado por outros amores de natureza diferente, mas, da mesma forma, absorventes. Duas únicas pessoas tinham voltado para mim o maior do seu interesse: você, mãe, e o Octavio, amigo. Agora ela. Passou, coitada, a viagem mergulhada em mim, com o olhar mais do­loroso que eu já vi na minha vida. E, fazendo das tripas coração, a me dizer que não me aborrecesse muito, que passava depressa, que tives­se forças e ajudasse um pouco a boa corrente. Várias vezes eu me lem­brei de você nos conselhos que ela me dava, um pouco ingênuos na forma com que viam na gente e, de certo modo, uma criança impressio­nável e de que é preciso afastar o escuro e o medo da vida.

Não sei, me sinto quase estúpido. É a primeira pessoa que me ven­ce assim, sem combate, e eu penso nos golpes que Deus tem dado, inu­tilmente, contra mim. Quando me lembro como foi ridícula a luta de cin­co meses que eu tive para conquistá-la — e nisso vai toda a minha vaidade de homem —, perto do amor que ela me ofereceu um dia, livremente e sem nenhuma luta, em nada influenciada pelas minhas finuras, me sinto meio humilhado. É extraordinário. E se você algum dia a conhecer melhor, você verá que ela é a pessoa mais difícil no julgamento de al­guém e o amor dela é alguma coisa como uma honra imensa para mim, eu em que ficou o resíduo de toda a sorte de paixões baratas e sempre à mão para a carne fácil que passasse a meu alcance.

Muitos beijos.

Vinicius

Querido poeta: correspondência de Vinicius de Moraes. Organização de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 28-29.

[1] N.S.: Antônia, jovem paulista e uma das primeiras paixões de Vinicius.