S.l., 2 de outubro de 1971

Jocy, my love,

É um sábado à tarde. 2-10-71. Estou sozinho. O piano está mudo e coberto com uma rede. Uma rede nova, trazida do Ceará, de onde cheguei ontem, à noite, carre­gado de troféus. Troféus que o intervalo temporal de uma curta e longa, ao mesmo tempo, existência vem trazendo. Talvez fossem mais se o passado tivesse sido vivido acima do Equador… quem sabe!

Só, uma solidão que sempre desejei, parece não se harmonizar agora, neste momento, com aquele desejo. Em cima da mesa do escritório – que está triste sem você –, duas cartas suas; alheamento ao que se passa por aqui, em parte justificado pelas suas atividades aí. Leio o roteiro do filme de Ingmar Bergman Envolta no feltro (his­tória de uma mulher casada com um médico que considera a vida do lar, ao lado do filho, “enfadonha” e vai intelectualizar-se com um arqueólogo), cujo título original é: The touch.[1]

José Condé morreu, enchendo as páginas literárias de notícias fúnebres, no dia em que, há 35 anos passados, García Lorca era fuzilado na Espanha. Como é sábado, os rumores das construções vizinhas não interrompem o silêncio desta tarde de sol que, lá fora, lá embaixo, deve estar propícia para os que não estão sós! Só o latir de um cachorro – fenômeno que somente Erich Fromm poderia explicar – fere o silêncio. Nem o telefone nem o barulho da geladeira nova que chegou no dia marcado nem o vizinho com sua possante vitrola estão presentes hoje. Entre outras cartas que aqui encontrei, uma do Gottschalk, outra de Kourakos, outra da rádio da Bélgica.

Nas sombras deste crepúsculo – hélas! – vejo os raios do seu horizonte deslum­brante. Aqui – o do San Francisco Conservatory (o que o Laufer foi diretor – o da Unesco); ali – é o Festival de Tennessee; acolá – é o Festival de Londres; tanta coisa que traz tanto orgulho e que ainda é tão pouco para você!

A estas horas você já deve ter concluído a sua gravação[2] que, como das outras vezes, o resultado não é outro senão o mais próximo da perfeição, que tem na sua paciência e perseverança a melhor companhia. O mês de outubro passará rápido. E eu talvez vá para aí nos últimos dias de sua permanência a fim de carregar suas malas para o aeroporto.

E tudo passou. A casa ficou habitada novamente, e a rotina continua. O pensa­mento, este está acorrentado. Não deve voar até aí e nem deve se atormentar em querer adivinhar o que por aí está se passando. O por aqui já basta. A rotina continua.

Tudo como antes, inclusive o perfume da saudade que se espalha dentro da casa vazia de você. Tudo passou. Mas o piano continua mudo e coberto com uma rede nova. As duas cartas que estavam sobre a mesa triste do triste escritório passaram para a gaveta funda dos guardados queridos. E assim vai a vida por aqui. E por aí? Beijos do

Eleazar

Jocy de Oliveira. Diálogo com cartas. São Paulo: SESI-SP editora, 2014, pp. 93-94.

[1] N.S.: Em português, A hora do amor.
[2] N.E.: Catalogue d’Oiseaux, de Messianen; piano solo: Jocy de Oliveira. Vox Records, Estados Unidos.