São Paulo, 20 de fevereiro de 1943

Rangel,

Pois é. Perdi o meu segundo filho, o Edgard, um menino de ouro, tal qual o Guilherme. Impossível filhos melhores que os meus, e talvez por isso foram chamados tão cedo. O Guilherme se foi aos 24 anos e agora o Edgard com 31. Ele nunca se esqueceu da primeira carta rece­bida pelo correio, uma tua.

Eu não me desespero com mortes porque tenho a morte como um alvará de soltura. Solta-nos deste estúpido estado sólido para o gasoso — dá-nos invisibilidade e expansão, exatamente o que acon­tece ao bloco de gelo que se passa a vapor. Mas Purezinha não se conforma. Impossível maior desespero. E do ponto de vista humano, tem razão. Foram dois filhos perfeitos. Creia, Rangel, que não me lembro de nenhuma coisa má, ou levemente má, que eles hajam feito em vida. Quantos pais podem dizer isto?

O Guilherme era caladão, metido consigo, como esses que vivem em eterno monólogo interior — e morreu a mais linda das mortes. Passou em pleno sono. Dormiu e não mais acordou para este mundo. Já o pobrezinho do Edgard sofreu muito — e com que estoicismo, Rangel! Com que filosofia de grande filósofo!

E assim vamos também nós morrendo. Morrendo nos filhos, pe­daços de nós mesmos que seguem na frente. Morrendo nas tremen­das desilusões em que desfecham nossos sonhos. E morrendo fisiologi­camente no torpor das glândulas, no decair da vista, no desinteresse cada vez maior por coisas que na mocidade nos eram de tremenda im­portância.

Se estamos aqui como numa escola de aperfeiçoamento, meus filhos acabaram o curso mais depressa do que eu — prova de que eram melhores alunos do que eu. E tive de assistir à morte dos dois e ficar no maior desapontamento — “sobrando”…

Lobato

Monteiro Lobato. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1972, pp. 359-360.