Gustavo Zeitel

Consta no acervo do Institut National de l’Audiovisuel (INA) um vídeo de 1986 em que Serge Gainsbourg classifica a canção como “arte menor”. O cantor e compositor francês respondia a uma pergunta do jornalista Bernard Pivot sobre sua juventude, quando se dedicou à pintura, após frequentar a Académie Montmartre. “Era uma iniciação a uma arte maior. Não era uma arte menor como as bobagens que nós fazemos aqui”, disse, apontando para a partitura empertigada no piano. Também convidado para o programa de tevê, o compositor Guy Béart questionou a declaração do colega de ofício. Gainsbourg chamou seu interlocutor de “idiota”, levantando a voz embriagada. “Você precisa de iniciação para as artes maiores, arquitetura, pintura, literatura. Nós não fazemos poesia”, arrematou, entre baforadas de cigarro Gitanes.

Pivot sorriu incrédulo. Ali estava o novo escândalo de Gainsbourg em rede nacional, tema que decerto teria repercussão na concorrência. O jornalista perguntou, então, se o compositor via sua obra como “arte menor”. “Sim, com exceção de algumas que esbarraram em Rimbaud”, respondeu. Era mais um golpe daquele que, nos anos 1980, era considerado o enfant terrible do Hexágono – cargo outrora ocupado por Jean Cocteau, hoje pertencente ao romancista Michel Houellebecq. O diagnóstico autodepreciativo não é somente falso, mas de deliciosa ironia. Detentor de obra monumental, Gainsbourg notabilizou-se por unir a tradição da poesia francesa a diversos gêneros musicais – da chanson ao reggae, passando pelo jazz, funk e iê-iê-iê. Tornou-se conhecido pelas canções românticas, ainda que nem todas recebam o devido prestígio. É o caso de uma carta de amor.

“En rélisant ta lettre”, do álbum L’étonnant Serge Gainsbourg (1961), mostra que alguns poemas só fazem sentido quando são somente som no ar. Com sopros cool jazz ao fundo, o poeta revê uma carta enviada por uma admiradora. O eu-lírico não se entusiasma com a remetente, implicando com seus erros de francês. “Relendo a sua carta, percebo que sua ortografia e você são duas pessoas”, diz. Os acordes se repetem, impedindo o embarque da voz grave na melodia. O canto permanece rente à leitura, o que reforça a comicidade da segunda faixa do disco. Até o fim da canção, para cada frase da remetente, o destinatário pontua uma correção gramatical. “Eu sou escrava/(Sem acento grave)/Das aparências/É ridículo/(“E” maiúsculo)”.

Considerando que o significado da missiva é atingido a partir de uma releitura, o conceito de durée proposto pelo filósofo Henri Bergson – e por Paul Valéry –, explica a detenção do eu-lírico em elementos intratextuais. Os erros ortográficos particularizam, simultaneamente, a carta para o destinatário e o ouvinte. Em Gainsbourg – Les secrets de toutes ses chansons (1958-1970), livro de 2012 ainda não traduzido no Brasil, Ludovic Perrin classifica “En rélisant ta lettre” como “uma das canções mais engraçadas e cruéis” do compositor. No livro, Perrin revela o grande apreço de Gainsbourg pela língua. Além de um Grand Larousse em doze volumes, o artista tinha em casa mais três dicionários: um Littré, um Robert e um dicionário de rimas.

“En rélisant ta lettre” não foi a única composição inspirada na forma das palavras. “Ce mortel ennui”, do primeiro álbum, Du chant à la une! (1958), explicita a origem do esnobismo do poeta. Entediado, canta o ato de preencher, com sua caneta, o vazio das letras “a” e “o” do jornal posto à sua frente.

Lucien Ginsburg nasceu em Paris no ano de 1928. Filho de um pianista e uma mezzo-soprano, Lulu teve a juventude interrompida pela Segunda Guerra Mundial. De família judaica, o rapaz foi obrigado a usar uma estrela amarela quando ainda estava na escola. Com o endurecimento das leis antissemitas, sua família teve de se refugiar em uma fazenda no Pays-de-la-Loire. Finda a guerra, retornou a Paris, onde Lucien viveu, até os 30 anos, de bicos relacionados à pintura. Só em 1954 começou a cantar na noite. Primeiro, como Julien Gris, depois, Julien Grix e, então, Serge Gainsbourg, o autor de “La javanaise” (1963) e “Je suis venu te dire que je m’en vais” (1973).

A feiura de Gainsbourg não foi habilidade desenvolvida ao longo do tempo. As orelhas de abano e os olhos de peixe nunca deixaram passar impunemente “l’homme à la tête de chou” (o homem com a cabeça de repolho, como era conhecido). “A feiura é superior à beleza, porque dura para sempre”, bradava. O compositor é motivo de orgulho para a classe dos feios: amou as mulheres mais lindas de sua época.

Em 1967, Gainsbourg apaixonou-se à primeira vista pela atriz e cantora Brigitte Bardot durante um programa de tevê. Bardot era conhecida pelo filme Girl in a bikini (1952), de Willy Rozier, e, cinco anos depois, se tornou estrela internacional com o longa E Deus criou a mulher, de Roger Vadim, seu ex-marido. Ainda que breve, B.B. teve um relacionamento tórrido com Gainsbourg. Os encontros do casal eram às escondidas, uma vez que, à época, a estrela era casada com o milionário Gunter Sachs. Do amor pela atriz surgiram dois álbuns fundamentais para a discografia do cantor. Bonnie and Clyde (1968), do qual se destaca a faixa homônima, e Initials B.B., disco do mesmo ano, em que Gainsbourg faz uma homenagem ao amor perdido. A canção “Initials B.B.”, aliás, é inspirada na sinfonia do Novo Mundo (nº 9), de Antonin Dvorák. Um ano antes, o artista havia dividido os microfones com B.B em sua composição mais famosa.

Em um estúdio Barclay mal-iluminado, o casal gravou em duas horas “Je t’aime, moi non plus”. Nas páginas de France-Dimanche já se dizia que os quatro minutos e trinta e cinco segundos da gravação eram preenchidos por “gemidos, suspiros e gritinhos de prazer de Bardot”. Temendo um escândalo, B.B. enviou uma carta ao amante, pedindo que não lançasse a música. Não tardaria para que o artista encontrasse outra musa.

O primeiro encontro com Jane Birkin não rendeu memórias românticas à atriz, modelo e cantora. Em Serge Gainsbourg: um punhado de Gitanes (Barracuda, 2004), a biógrafa Sylvie Simmons revelou que o compositor tratava sua futura paixão com desdém. Os dois se conheceram nas filmagens do longa Slogan (1969), de Pierre Grimblat. “Ele foi tão arrogante, tão sarcástico, tão esnobe! (…) E ficou bastante ofendido quando o chamei de Serge Bourguignon. Acho que era o único nome francês que eu sabia, da culinária”, recordou Birkin. Pouco a pouco, o humor do artista alterou-se. Do set, o casal rumou para um hotel. Era o início de uma relação que duraria dez anos. Em carta à amiga Gabrielle, Birkin declarou que “ele era perfeito, divertido e muito peculiar. Ele se importava muito se você gostava disso ou daquilo, ou se você se sentiria bem se ele enchesse o quarto de rosas brancas”.

Não é exagero dizer que o mundo acompanhou a história de S.G. e J.B. “Serge comprava os jornais todos os dias só para ver se nós estávamos lá. E sempre estávamos. Ele adorava. Costumava dizer: Nós somos mitológicos”, contou J.B a Simmons.  O casal regravou “Je t’aime moi non plus”, que seria censurada em países como Itália, Brasil e Inglaterra – em 1986, a versão original com Bardot viria a público. O sucesso ocasionou a realização do disco Jane Birkin, Serge Gainsbourg (1969), em que figuraram sucessos antigos do compositor, como “Les sucettes”.

A canção, originalmente interpretada por France Gall, é exemplo nítido do processo criativo de Gainsbourg. “Les sucettes” é construída a partir de uma ambiguidade, irreplicável ao nosso português, entre pirulitos (“sucettes”) e felação. Na obra do poeta, é constante a exploração da polissemia, ocasionada pelos jeux-de-mots do texto cantado.

Do período ao lado de Birkin restaram muitas fotos. Até os dias atuais, não é raro encontrar jovens na internet impressionados com a beleza das fotografias do casal, mesmo que não associem as figuras às respectivas carreiras artísticas. Birkin ainda estampou a capa de Histoire de Melody Nelson (1971), álbum conceitual inspirado no romance Lolita, de Vladimir Nabokov.

Em 1980, decidiu se separar do companheiro. Nessa década, Gainsbourg encontrara um alter ego, Gainsbarre, homem maltrapilho, às vezes violento, consumido por álcool e nicotina. Gainsbarre intensificou o número de escândalos. Alguns atiçavam a França, outros eram simplesmente condenáveis. Lucien, Serge, Julien e Gainsbarre morreram em 1991, vítimas de um infarto.

Em sua carreira musical, Birkin ainda interpreta clássicos do ex-companheiro, sendo, aos 74 anos, referência para o mundo da moda. No mês de fevereiro deste ano, a atriz Charlotte Gainsbourg, filha do casal, se pronunciou a AFP sobre os trinta anos da morte do pai. “Hoje, vivemos em um mundo tão censurado que me pergunto como ele teria vivido. Seria proibido de aparecer na tevê? Ele fazia coexistir sua grande sensibilidade com grande senso de provocação. Isso não se vê mais hoje em dia.”

Assista ao clipe de “En rélisant ta lettre” (1966)