Doente foi pintado em 1917, um ano difícil na vida da pintora alemã Gabriele Münter (1877-1962). No quadro, a mulher de cabelos avermelhados ergue-se um pouco na cama e tem o semblante abatido. O título indica que ela não está simplesmente repousando, mas enfrentando alguma doença. Tudo leva a crer que a enferma é a própria pintora, pois ela usa no pescoço o mesmo colar com pingente alaranjado vivo que aparece no Autorretrato em frente ao cavalete, feito muitos anos antes.

No lado direito da tela, outra mulher lê em voz alta a carta que tem em mãos. O vestido negro e sóbrio (impossível não pensar em luto!), o rosto sem os traços e as mãos retratadas de maneira exageradamente alongadas dessa figura introduzem na cena uma nota sinistra – algo atemorizante emana do papel.

Münter foi cuidadosa na escolha das cores: ela se limita ao branco e preto, cores frias rebaixadas e tons terrosos, para transmitir as sensações de fragilidade física, recolhimento e alguma tristeza. Nada das cores vigorosas que aparecem em obras de anos anteriores. Como boa pintora que era, no entanto, ela soube equilibrar a temática do quadro e dar a ele uma dose de ambiguidade. O pingente no peito da mulher (única nota de cor vibrante), o abajur discretamente aceso e a janela aberta para o gramado verdejante indicam que há esperança.

Mas, ainda fica a pergunta: o que aconteceu com ela? Que doença tem, e como  adoeceu? Para entendermos o que envolve o tema de Doente, temos que percorrer a biografia desta pintora.

Gabriele Münter nasceu em Berlim, numa família de boas condições financeiras que lhe permitiram receber formação artística. Aos vinte anos, ela se mudou para Düsseldorf, onde primeiro estudou no ateliê de um pintor local e, mais tarde, na Escola de Pintura para Mulheres (Malschule für Damen), pois naquela época a Academia de Arte (Kunstakademie) admitia apenas homens. Tempos depois, entediada com as aulas antiquadas, dedicadas à cópia de modelos, muda-se para Munique e se matricula na Associação de Artistas Mulheres (Künstlerinnen Verein). As lições oferecidas ali não eram muito diferentes, e a insatisfação continuou.

Ainda buscando uma formação que correspondesse a seus anseios artísticos, Münter ingressou, em 1902, na escola Phalanx de Munique. Nesse ambiente progressista, ela encontrou empatia e inteligência nas aulas de um jovem professor russo, Wassily Kandinsky. Este professor, como sabemos, se tornaria um dos grandes mestres da arte moderna, pioneiro da pintura abstrata.

Com a crescente afinidade entre os dois, não demorou que Münter e Kandinsky se unissem num casamento informal (ele estava separado da primeira mulher, porém o processo russo de divórcio levava anos). Entre 1904 e 1908, viajaram muito: Tunísia, Itália, Paris, Sèvres, Berlim e outras cidades da Alemanha. O casal ficou especialmente fascinado pelas cores fortes de Paul Gauguin e Georges Rouault, e pela simplicidade de Henri Rousseau. Eles viram também pinturas de Pablo Picasso e Henri Matisse. O contato com as obras de Pós-Impressionistas e Fauves teria influência duradoura no trabalho de Münter.

Terminada a temporada de viagens, ela comprou uma casa e passou a morar em Murnau, bucólica cidadezinha da Baviera, no sul da Alemanha. Kandinsky seguiu morando em Munique, mas a pouca distância entre as duas cidades permitia ao pintor passar bastante tempo com Münter. Ela também recebia em sua casa vários amigos e artistas, alguns dos quais fariam parte, mais tarde, do grupo O Cavaleiro Azul (Der Blaue Reiter), um dos mais importantes do expressionismo alemão.

Foi em 1911 que Münter, juntamente com Kandinsky e Franz Marc, deu início à formação desse grupo, que veio a contar também com artistas como Alfred Kubin, August Macke e Paul Klee. Os trabalhos feitos ali não seguiam uma diretriz única, mas tinham em comum a preocupação com o uso independente e expressivo da cor, inspirado no cromatismo vigoroso de van Gogh, de Gauguin e dos Fauves. Os membros também compartilhavam o interesse pela arte de povos primitivos, artistas populares e crianças.

A valorização da arte popular e da arte de culturas não-europeias teve efeito profundo na pintura e na escultura modernas. Buscando alternativas à visualidade europeia estabelecida, artistas traziam para seus trabalhos as qualidades expressivas e a simplificação formal  de objetos criados por povos da África e da Oceania, camponeses, crianças e doentes mentais. Para Münter, foi um acontecimento decisivo o encontro com as artes populares tradicionais da Baviera.

Foi particularmente influente no desenvolvimento artístico de Münter a descoberta da pintura em vidro (Hinterglasmalerei). Ela sentiu-se atraída pelo procedimento básico dessa técnica – traçar um desenho no vidro com grossas linhas pretas, criando formas bem delimitadas, e então preenchê-las com pinceladas de cor. As pesquisas sobre essa técnica popular trouxeram mais vigor à arte dela: as cores delicadas deram lugar a tons vibrantes, e superfícies com textura foram substituídas por pinceladas planas que formavam zonas de cor claramente definidas. Basta comparar, por exemplo, o autorretrato mencionado acima com Jawlensky e Werefkin, um retrato do casal de artistas russos Alexej Jawlensky e Marianne von Werefkin, no qual o jogo cromático é mais importante que a função descritiva.

Com o início da primeira guerra mundial, Kandinsky teve que retornar a seu país, e Münter mudou-se para Estocolmo, onde se juntaria novamente ao marido no Natal de 1915. Quando, três meses depois, ele partiu para a Rússia, Münter estava segura de que ele voltaria com os documentos necessários para a tão esperada formalização do casamento que durava quinze anos. E, neste ponto, retornamos ao tema de Doente. Para Münter, foi um terrível choque receber a carta de Kandinsky, datada de junho de 1917, informando-lhe que acabara de se casar com Nina Andreevskaya, a filha adolescente de um general russo.

Antes de retornar a Murnau, ela permaneceu por mais alguns anos na Escandinávia, fazendo esboços de paisagens e de interiores, registrando seu dia-a-dia em desenhos. Sua produção foi escassa nesse período, e o tema de mulheres em ambientes fechados tornou-se mais frequente.

No início da década de 1930, o trabalho de Münter começa a se tornar mais conhecido. Uma exposição itinerante de sua obra acontece na Alemanha entre 1933 e 1935. Em 1937, porém, seus quadros são retirados de circulação pelos nazistas, recebendo a classificação de “arte degenerada” (rótulo então aplicado a boa parte da arte moderna, e que servia como pretexto para confisco, venda ou destruição de obras).

Durante a segunda guerra mundial, Münter correu grande risco ao esconder em seu porão a igualmente “degenerada” arte de Kandinsky. Ela mantinha grande quantidade de trabalhos que ele deixou para trás, feitos no período em que estavam juntos – mais de 100 pinturas e algumas centenas de desenhos, aquarelas e gravuras, que posteriormente seriam doados a um museu de Munique.

Com o fim da guerra, Münter finalmente passa a receber o devido reconhecimento. Juntamente com Käthe Kollwitz e Paula Modersohn-Becker, ela é considerada uma das artistas de peso da arte moderna alemã.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer

Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset