Séverine está entre as criações mais notáveis do pintor Louis Welden Hawkins. Filho de pais ingleses, mas nascido na Alemanha, em 1849, ainda jovem se instalou em Paris, onde recebeu sua formação de pintor, naturalizou-se francês e permaneceu na França até o fim da vida.

Hawkins exibiu este retrato pela primeira vez na Exposição Nacional de 1895, conquistando a admiração dos críticos e dos demais pintores participantes. Em Séverine, Hawkins realiza mais do que um simples registro da modelo; ele nos oferece uma representação simbólica e uma síntese visual da personalidade e das aspirações dessa mulher de olhar sonhador. Diante do quadro, o escritor Jean Lorrain lançou a questão, em tom de enigma: “Quem deveríamos parabenizar mais, o pintor ou a modelo? A modelo, porque inspirou tal retrato, ou o pintor por ter encontrado a interpretação da mulher?”.

O traje que se assemelha a uma túnica clássica, bem como o fundo dourado, conferem à figura algo de hierático, uma certa aura mística, muito característica do Simbolismo. Hawkins, tal como seus companheiros simbolistas, apreciava os mestres antigos, e é bastante plausível enxergar no fundo dourado uma referência à pintura italiana dos séculos XIV e XV, na qual se empregava esse recurso em cenas religiosas. Ao mesmo tempo, o retrato evoca uma mulher moderna e decidida, ocupada com a escrita e a atividade intelectual. Os livros, cartas e instrumentos de caligrafia na mesa indicam seu trabalho e a intensa troca de correspondência que ela mantinha com leitores e colegas de profissão. A inclusão na moldura dos ramos de oliveira e de trigo, como símbolos das palavras Pax (Paz) e Panis (Pão), revela o compromisso político e ideológico da retratada. Mas, afinal, quem é ela?

O título do quadro, Séverine, é também o pseudônimo de Caroline Rémy, nascida em Paris em 1855. Primeira jornalista mulher a conquistar renome na França, ela defendia em seus artigos a causa feminista, militava pelo pacifismo e denunciava várias formas de opressão.

Quando tinha dezessete anos, Caroline (que ainda não era Séverine) engravida e é forçada pela família a casar-se com o pai da criança. Mesmo com o nascimento de seu filho, ela decide separar-se, a despeito do estigma que, à época, as mulheres separadas carregavam.

Em 1879, viaja para Bruxelas, e ali conhece o escritor e jornalista socialista Jules Vallès. Esse encontro muda o curso de sua vida e fará dela a primeira jornalista mulher a viver de sua escrita. Ela se torna secretária de Vallès e, sob orientação dele, é iniciada no jornalismo, colaborando em várias publicações destinadas a defender a classe trabalhadora.

O segundo marido de Séverine, Adrien Guebhard, era um médico de família abastada que apoiou os projetos da mulher ao longo de toda a sua vida. Foi fundamental, por exemplo, a assistência financeira de Adrien para o lançamento do jornal Le Cri du Peuple (O Clamor do Povo). Séverine não só escreveu para este jornal como o dirigiu, entre 1885 e 1888. Desde então, a assinatura dela passa a ser cada vez mais frequente nos jornais da época. Em 1897, ela fundaria outro periódico notável, chamado La Fronda (A Fronda), o primeiro feito inteiramente por mulheres. Redação, revisão, gerenciamento, tudo era feito por elas, inclusive a parte de tipografia e impressão.

Séverine foi também pioneira nas reportagens. Visitou as ruínas do teatro Opéra Comique para apurar a responsabilidade pelo incêndio que matara dezenas de pessoas e celebrizou-se, sobretudo, pela entrevista que fez com o papa Leão XIII como enviada do jornal Le Figaro.

Ao longo de sua carreira, Séverine levantou-se contra todas as formas de violência e intolerância. O envolvimento com as questões políticas e sociais de seu tempo foi múltiplo e polêmico: na Primeira Guerra Mundial, ela apoiou os anarquistas e protestou contra o conflito; em 1921, aderiu ao Partido Comunista (porém desfiliou-se dois anos mais tarde, por discordar de suas diretrizes); foi uma das poucas vozes a se levantar contra o antissemitismo que ganhava impulso no início do século XX.

Ativista favorável à igualdade de gênero, ela teve papel de destaque no movimento feminista francês, e seguia com interesse o movimento das sufragistas britânicas. Sempre em consonância com sua escrita, participou de protestos e reivindicações, que levantavam bandeiras novas e controversas, como o direito ao aborto. Séverine nunca viu o fruto de seus esforços, pois foi preciso esperar até a década de 1930 para que fossem reconhecidos os primeiros direitos políticos femininos. Uma coletânea de seus escritos militantes foi publicada com o título Pages Rouges (Páginas Vermelhas).

Quando Hawkins retratou Séverine, em 1895, ela estava no auge da popularidade (a modelo e seu pintor compartilhavam a mesma ideologia). O escritor Laurent Tailhade, ao ver o quadro, propôs uma definição para a figura que tinha diante de si: “É a guerreira de coração maternal”. Outros artistas também a retrataram: o pintor Renoir, o escultor Rodin e o fotógrafo Nadar.

Séverine viveu, escreveu e lutou em Paris. Morreu em 27 de abril de 1929 numa cidade do norte da França chamada Pierrefonds. Mesmo distante da capital, seu funeral reuniu duas mil pessoas.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset