Ao pintar O mercador Georg Gisze, Hans Holbein, o Jovem (1497-1543) lançou mão de um tipo de composição muito utilizada na época para retratar intelectuais e escritores: o modelo aparece sentado a uma mesa ou escrivaninha, cercado por objetos. É o caso, por exemplo, de Erasmo, pintado em 1523, e também do retrato do astrônomo Nicholas Kratzer, de 1528. Este último, aliás, pode ser considerado precursor direto de Georg Gisze.

Costuma-se fazer referência a este pintor chamando-o de “o Jovem” para diferenciá-lo de seu pai, Hans Holbein, o Velho, um dos principais pintores do sul da atual Alemanha durante o período de transição do Gótico tardio para o Renascimento.

O retrato desempenhou papel predominante na obra de Holbein, o Velho, que captava os traços de seus modelos (patronos, familiares, colegas, membros de associações diversas e clérigos locais) por meio de desenhos feitos em pequena escala, de um refinamento técnico incomum, que ele guardava em cadernos. Esses retratos sobreviveram em maior número do que os de qualquer outro artista que viveu por volta de 1500. Os filhos, Ambrosius e Hans Holbein, receberam formação no ateliê paterno, e ali aprenderam a arte do retrato. É neste gênero que mais se evidencia  a relação artística entre o jovem Hans e seu pai.

Após o período de aprendizagem em Augsburgo, Hans Holbein, o Jovem transferiu-se para a Basileia, na Suíça. Ali ele rapidamente se tornou o principal talento, realizando decorações monumentais, projetos para ilustrações de livros, além de retratos. No entanto, as encomendas de arte sacra caíram significativamente a partir de 1529, quando a Reforma Protestante prevaleceu na cidade. Esse foi um dos motivos que levaram o pintor a deixar a Suíça para fixar residência em Londres, no início de 1532.

O retrato de Georg Gisze contém um momento de ação: ele está prestes a abrir uma carta, mas se detém e nos olha, como se acabássemos de entrar em seu escritório. Supõe-se que esta tela fosse destinada à futura noiva do retratado, o que nos ajuda a entender o interesse pela verossimilhança não só da figura, mas também dos pertences que revelam seu status social. A personalidade de Gisze parece ser aqui ilustrada por sua atividade de comerciante, representada pelos objetos que compõem a cena: vê-se um pouco da cera de lacre ainda não utilizada no pequeno bastão vermelho à direita; contratos, tesouras, pena, selos, um punhado de moedas num pequeno recipiente de metal. Um livro descansa sobre a prateleira. Da parede pendem cartas lidas, enquanto Gisze tem nas mãos mais uma missiva que ele acaba de abrir. É admirável a capacidade de Holbein de representar tão exatamente a natureza material dos diversos objetos em cena, e ficamos em dúvida sobre o verdadeiro tema do quadro: o homem que nos olha ou os preciosos pertences em seu escritório?

Mas há também o lembrete de que o mundo material não é tudo o que existe, pois Holbein insere entre os objetos alguns símbolos de mortalidade e de passagem do tempo. Se olharmos o primeiro plano da pintura, vemos sobre a mesa um pequeno relógio de metal acobreado. Ele denota um certo grau de riqueza, e é também a expressão da preocupação de um empresário com compromissos e, naturalmente, lucros. Mas o relógio possui ainda uma dimensão moral: simboliza a passagem do tempo e da vida. Essa ideia torna-se ainda mais evidente se olharmos para o belo vaso de vidro veneziano, tão bem pintado, com cravos e alecrim. A fragilidade das flores, das ervas e do vidro é um memento mori, uma “lembrança da morte”, metáfora da fragilidade da própria vida. É ainda a recordação da insignificância das atividades mundanas, das coisas do dia a dia que fazemos para ganhar dinheiro.

O mercador Georg Gisze traz, portanto, uma contradição inerente: uma advertência quanto à transitoriedade das mesmas coisas que estão sendo celebradas. É um fascinante emaranhado de sentidos dos quais o artista e o cliente estavam plenamente conscientes. Além disso, há na parte superior da pintura um pedaço de papel pregado à parede em que se lê: Διsνχιού in Imaginem Georgij Gysenn/ Ista, refert vultus, quam cernis, Imago Georgi/ Sic oculos vivos, sic habet ille genas./ Anno ætatis suæ xxxiiij/ Anno domini 1532 (Dístico sobre a imagem de Georg Gisze/ Isto que você vê é o retrato de Georg, mostrando suas características/ Quão vívidos são seus olhos e como sua bochecha é formada/ Em seu 34º ano de idade/ no ano de Nosso Senhor 1532). Ou seja, a própria figura retratada é também uma lembrança da passagem do tempo, pois sabemos como nossos traços se transformam de maneira irreversível ao longo da vida.

Holbein, o Jovem pintou vários comerciantes da Liga Hanseática, da qual Georg Gisze era membro. Na época em que o retrato foi feito, a Liga existia havia mais de trezentos anos. Constituía-se de comerciantes do norte da Europa que uniram forças para se defenderem de dificuldades em comum, como ataques de piratas ou impostos abusivos. Georg Gisze era de  Danzig, na atual Polônia, e trabalhava no escritório londrino da Liga Hanseática. Pertencia a uma rica família de comerciantes e em 1519 foi elevado à nobreza, juntamente com seus irmãos, pelo rei polonês Sigismundo I.

Os retratos dos comerciantes nórdicos pintados por Holbein contribuíram para estabelecer sua alta reputação como retratista. Alguns historiadores acreditam que O mercador Georg Gisze foi o primeiro desse conjunto, pois o virtuosismo empregado neste quadro, ainda segundo os críticos, sugere que Holbein queria mostrar do que era capaz, no intuito de conquistar mais encomendas, o que de fato aconteceu.

Holbein se tornou o pintor oficial do rei Henrique VIII e de sua corte, para quem também desenhava joias e projetava decorações. Hans Holbein, o Jovem morreu em Londres, em 1543. A causa de sua morte é incerta (alguns historiadores afirmam que ele morreu devido à peste), e o lugar em que seu corpo foi enterrado permanece desconhecido. O que podemos afirmar com segurança é que sua pintura influenciou a tradição do retrato ao norte dos Alpes durante todo o século XVI.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset