Como acontece com todo pintor, a cada quadro o colombiano Fernando Botero, nascido em 1932, tem que lidar com um dos fundamentos de sua prática: a cor. Como é a composição cromática em A carta, de 1976? Para responder, precisamos primeiro identificar quais as cores presentes na pintura para, em seguida, observarmos como são distribuídas e como se combinam.

As principais são azul, vermelho, alaranjado. Além disso, tons rosados para a pele e um branco amarelado para os lençóis e travesseiros. O pintor trabalhou de modo a equilibrar cores frias e quentes, dando certa preferência, no entanto, às quentes. Transmite a sensação de calor, algo de carnalidade, o conjunto formado pela cama, a colcha vermelho vivo, a figura de pele rosada e cabelos ruivos. Esse conjunto é envolvido pelas paredes pintadas com um azul mais fresco, que se repete na pulseira e no colar que pende da cama.

Imagine, por exemplo, se outra cor quente fosse usada nas paredes – a cena pareceria um forno, sentiríamos calor só de olhar. Não foi essa a intenção do artista. Na própria figura feminina há pontos de contraste entre frio e quente: o esverdeado dos brincos e olhos, a já mencionada pulseira, as folhas verdes em meio ao amarelo das flores. À colcha vermelha se contrapõe outra, em verde escuro, que serve, por sua vez, para destacar a cor das frutas (as laranjas partidas, com os suculentos gomos à mostra, é um convite cifrado).

Outro ponto a se destacar no uso que Botero faz da cor diz respeito à quase total ausência de sombras em seus quadros, que parecem imersos em constante luz matinal e homogênea. A luz não se origina de uma fonte externa (uma janela, por exemplo, como fazia Vermeer), e é como se os objetos emitissem sua própria luz. Isso é curioso porque, ao longo da história da pintura, o que vemos constantemente é o uso do sombreado para construir o volume, método que Botero não adota. Tal como a luminosidade, o volume e o peso de suas figuras são criados pela cor. O artista diz: “A cor é fundamental nos meus quadros porque ilumina a pintura e, ao final, o quadro encontra solução no momento em que a cor está resolvida. O significado da pintura vem desse desejo de encontrar um lugar perfeito para cada cor”.

Em inúmeras entrevistas ao longo da carreira, Botero sempre disse que não pinta figuras gordas. Pode parecer estranho, a princípio, mas é verdade. Podemos entender a declaração a partir de duas observações. A primeira está ligada à questão que acabamos de abordar: a importância da cor. O pintor esclarece: “Em termos de volume são formas amplas que respondem ao desejo de criar grandes campos de cor. Esta dilatação encerra um desejo de expressar-me através da cor de forma contundente”.

A forma e as dimensões das figuras, portanto, não se devem à intenção de representar corpos obesos, mas sim de criar amplas áreas de cor. É por isso que nas telas de Botero não são apenas as figuras que são volumosas, todos os outros elementos também o são: as frutas, o criado-mudo, a cama e, claro, a moça ruiva.

O interessante é que, por contraditório que pareça, essas formas exageradas são também leves como balões. No caso de A carta, hoje no Museu Botero, em Bogotá, por exemplo, note-se como a mulher está levemente pousada sobre a cama, parece levitar. Imagine que, numa representação literal, o corpo estaria mais afundado no colchão, e o peso formaria marcas e dobras no lençol.

Uma segunda maneira de entender por que Botero não pinta pessoas gordas é compará-lo com artistas que as pintam. Nas telas do colombiano, os corpos, apesar de extensos, são quase chapados, lisos, com relevo pouco acidentado. Compare, por exemplo, com os retratos feitos por Lucian Freud, como Supervisora de benefícios dormindo e Dormindo perto do tapete com leão. Compare ainda com telas pintadas pela britânica Jenny Saville, como Prop e Marcada – a diferença é evidente.

Nestes casos, sim, trata-se de interesse em investigar visualmente o corpo obeso, buscando a maior potência plástica possível. São exemplos que integram a linhagem de artistas que representaram a forma corpulenta. Linhagem essa cujas origens poderíamos remontar à bela e antiquíssima Vênus de Willendorf, considerada símbolo de fertilidade. E ainda o pintor espanhol Juan Careño de Miranda, discípulo de Velázquez (um dos mestres que Botero mais admira). Por volta de 1680, Miranda retratou  duas vezes a menina Eugenia Martínez Vallejo (Vestida e Desnuda).  Devido a uma provável doença genética, a criança possuía peso anômalo, o que lhe rendeu a alcunha, bastante preconceituosa, de La niña monstrua.


Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset