Em As jovens, pintura conhecida também pelo título A carta, uma graciosa senhorita passeia, trajando vestido negro e corpete branco, os cabelos envolvidos por um lenço. Ela se detém para ler a carta que a criada acabou de lhe trazer. Ao que parece, esta carta foi escrita por um amante, pretendente ou admirador. Duas pistas apontam para isso: em primeiro lugar, o ar satisfeito da moça, que coloca a mão na cintura em certa pose de vitória. Em segundo lugar, o pequeno cão, um spaniel, que devotamente reclama a atenção da leitora, puxando sua saia. Ele pode ser visto como representação do emissor da carta, evocando a reconhecida fidelidade canina.

A seu lado, a criada, também vestida de negro, abre uma sombrinha para evitar que o sol escureça a pele rosada de sua patroa. Na época de Goya, o ideal de beleza feminina passava longe do bronzeado, considerado negativamente sinal de trabalho braçal (a pele bronzeada permaneceria associada ao trabalho, e não ao lazer, até meados do século XX).

E por falar em trabalho braçal, a cena tem, ao fundo, um friso composto por mulheres que trabalham; lavadeiras esfregando lençóis e pendurando-os para secar em cordas e estacas.

A fileira de roupas estendidas define a linha do horizonte e divide a composição em duas metades. Na parte inferior estão as lavadeiras, cujas figuras foram feitas com pinceladas pretas bem marcadas. Os traços de seus rostos estão apenas sugeridos. Acima da linha do varal, sobressaem, no azul do céu, as cabeças das mulheres que passeiam, assim como a sombrinha, cujo amarelo cria um contraste com a cor do fundo.

No aspecto compositivo, As jovens relembra obras anteriores de Goya, em que se vê a justaposição de mulheres e homens, elite e classe trabalhadora, lazer e trabalho, contemplação e atividade.

No início da carreira, Goya atuou como pintor de cartões para tapeçaria (pinturas, às vezes em grandes dimensões, que serviam de modelo para tapetes). Nestas obras, o artista costumava enriquecer a cena por meio da aproximação de contrastes: em O vendedor de louça e Outono, por exemplo, classes superiores e inferiores são postas lado a lado, e em Outono vemos membros da elite contra trabalhadores ao fundo – composição retomada, muitos anos depois, em As jovens.

Durante muito tempo, considerou-se As jovens um pendant (um par) de outra obra de Goya, As velhas (ou O tempo). Nesta pintura, um par de velhas está olhando – para não dizer admirando – o próprio reflexo. Nas costas do espelho aparece a inscrição sardônica ¿Qué tal?. A figura à direita, uma velhota desdentada, traja belo vestido furta-cor, de musselina azul e amarela, e segura o pó de arroz que acabou de passar no rosto. Sua companheira não é menos horrorosa, com o nariz carcomido, as mãos como garras, dentes animalescos. Levantando-se atrás delas está o Tempo, com cabeleira grisalha e asas estendidas, segurando não uma foice, mas uma vassoura com a qual em breve varrerá as velhas para longe. As joias e adornos permanecem, suas donas decaem – é o que a pintura parece dizer, em condenação à vaidade.

Aqui se instaura o contraponto: a senhorita de As jovens seria também vaidosa? Neste caso, a carta que ela delicadamente segura na mão direita (e que ocupa o centro exato do quadro) funcionaria tal qual um espelho, que lhe oferece o reflexo lisonjeiro de suas conquistas.

Goya foi um dos artistas mais potentes e originais de sua época. Nascido em Fuendetodos, região de Aragão, filho de um mestre-dourador, aos treze anos ele deixou a pequena cidade natal para ser aprendiz no ateliê de um pintor da cidade de Saragoça. Em 1773, casa-se com Josefa Bayeu, irmã do pintor de corte Francisco Bayeu, que auxiliou Goya a se estabelecer em Madri. Foi através do cunhado que Goya começou a trabalhar para a Manufatura Real de Santa Bárbara, fazendo os cartões para tapeçaria mencionados acima. Durante esse período, também fez retratos e pintura religiosa, e sua fama foi crescendo. Ele foi eleito para a prestigiosa Real Academia de Belas Artes de São Fernando em 1780 e, nove anos depois, nomeado pintor da corte de Carlos IV, que acabara de subir ao trono.

Aos 46 anos, Goya contraiu uma misteriosa doença que por pouco não o matou, mas deixou sequelas – ficou completamente surdo para o resto da vida. As obras que ele executa a partir da convalescença marcam o início da preocupação com o mórbido, o bizarro e o ameaçador,  característica importante da sua fase madura.

Goya manteve a posição como pintor de corte (a contragosto, dizem alguns biógrafos) quando o trono espanhol foi tomado por José Bonaparte, durante a invasão napoleônica. Quando o poder retornou aos espanhóis, o pintor conseguiu mais uma vez manter-se no posto, agora sob o reinado de Fernando VII, para quem pintou duas obras célebres que mostravam a violência dos invasores e a resistência dos compatriotas, O 2 de maio de 1808 em Madri e O 3 de maio em Madri.

Sentindo os problemas da velhice, Goya obteve do rei permissão para deixar o país e mudar-se para Bordéus, na França, onde viria a falecer em 1828, deixando cerca de quinhentas pinturas, trezentas gravuras e centenas de desenhos.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer

Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset