Mikhail Larionov pintou Vênus em 1912. Nessa época, ele estava interessado em manifestações da criatividade popular, em desenhos infantis e na arte de culturas antigas. Essa é a razão pela qual o artista escolheu aplicar à pintura recursos estilísticos deliberadamente simplificados.

A imagem tem poucas cores: amarelo vibrante, branco, detalhes em verde e em rosa vivo, e um marrom avermelhado usado, por exemplo, para fazer o contorno das figuras. Um pássaro branco entra em cena pelo canto direito, trazendo no bico uma cartinha para Vênus, que parece distraída. Pela cor e pela função (pensamos nos pombos-correios), imaginamos que o pássaro, no caso, seja uma pomba, porém as patas espalhadas e o pescoço esticado fazem com que mais pareça uma galinha. Vênus, a destinatária da carta (escrita por um admirador apaixonado?), descansa reclinada sobre amplos travesseiros. Ela tem grandes olheiras e escolheu como penteado duas trancinhas amarradas com fitas, o que lhe confere ar de criança velha. Além dos travesseiros, vemos também o lençol branco estendido por um Cupido meio feioso mas, curiosamente, não se vê cama alguma! O Cupido, aliás, é também bastante ambíguo, assim como a pomba-galinha: não sabemos ao certo se ele está gentilmente estendendo o lençol sobre sua musa ou se, ao contrário, está dando um puxão no tecido e Vênus está prestes a levar um belo tombo. Há algo de lúdico permeando toda a imagem, e o pintor escreveu seu primeiro nome em rosa, no canto direito inferior  da tela, ao modo das crianças que costumam “assinar” os desenhos que fazem na escola.

Podemos entender melhor a escolha de uma fatura rudimentar se levarmos em conta o percurso de Larionov. Ele estudou no Instituto de Moscou de Pintura, Escultura e Arquitetura, onde em 1900 conheceu sua futura mulher e companheira de toda a vida, a artista Natalia Gontcharova. Além de pintor e artista gráfico, ele foi líder da vanguarda artística de seu país. Os dois grupos artísticos mais importantes da Rússia no início da década de 1910 contaram com Larionov e Gontcharova como membros fundadores: o Valete de Ouros (Бубновый валет, Bubnovyi Valet) e, mais radical, o Rabo de Burro (Ослиный хвост, Osliniy Khvost) – os dois nomes foram escolhidos por ele.

Uma viagem a Paris em 1906 possibilitou o contato do pintor com o Pós-impressionismo, o que trouxe para sua obra traços vindos principalmente de Paul Cézanne e Paul Gauguin. Mais tarde, por volta de 1912, Larionov começou a considerar demasiada a influência francesa na arte russa de então. Isso o levou a se retirar do grupo Valete de Ouros (no qual a presença cézanniana era forte) para seguir suas pesquisas plásticas na direção do que ficaria conhecido como movimento neoprimitivista, cultivado pelos integrantes do grupo Rabo de Burro.

O Neoprimitivismo foi um movimento importante na pintura russa do início do século 20. Nele, influências das vanguardas ocidentais (fauvismo, cubismo, futurismo) eram combinadas  de maneira deliberadamente crua com elementos visuais derivados de várias fontes: arte camponesa, impressos populares coloridos (chamados lubki), desenhos infantis, sinalização e placas urbanas, além de vários outros aspectos do patrimônio artístico do país. Larionov e Goncharova tornaram-se os principais expoentes do Neoprimitivismo. Outros pintores influenciados por esse movimento foram Marc Chagall e Kazimir Malevich. As propostas neoprimitivistas tocaram também poetas russos, como Vladimir Maiakovski, estimulando a escolha dos temas camponeses ou o uso deliberado de arcaísmos e grafias incorretas, e outros desvios da norma culta.

Larionov queria rebelar-se contra o que chamava de “a fingida santidade Greco-Romana”, ou seja, as regras e cânones da arte clássica, e por isso decidiu, no início da década de 1910, pintar sua própria série de Vênus, da qual esta pintura de 1912 é a conclusão.

Vênus repete a pose típica de um dos temas consagrados da arte ocidental, a Vênus reclinada, que retribui o olhar do espectador enquanto cobre o sexo com uma das mãos (ou, em alguns casos, com um tecido). É a clássica posição da Venus pudica, tradição pictórica que se estende desde os grandes pintores venezianos, como Ticiano (Vênus de Urbino), até reinterpretações modernas como as de Édouard Manet (Olympia) e Gauguin (A Esposa do Rei). No início da década de 1910, esta pintura de Gauguin fazia parte de uma coleção particular russa (atualmente está no Museu Pushkin de Moscou), e Larionov teve a oportunidade de observá-la. Da tela de Gauguin o pintor russo empresta explicitamente, enquanto exagera e caricaturiza, a árvore com flores brancas, o pássaro (que em A Esposa do Rei está aos pés da mulher) e as vívidas tonalidades amarelas.

Larionov explora, ainda, as possibilidades expressivas da caligrafia. As palavras que aparecem na tela misturam letras de forma e cursivas (fazendo pensar, novamente, numa criança que ainda não sabe direito a diferença entre uma e outra). Essas inscrições servem para dar o título e identificar tanto o tema como o próprio pintor. À esquerda superior do nu reclinado encontramos “Вен / ера” (Ven / era, Vênus); no canto inferior direito “Михаил” (Mikhail); e na parte inferior “1912 Г” (1912 G, Ano 1912).

Outra característica notável em Vênus é que a cor está totalmente liberada de sua função descritiva ou imitativa. O pintor não está interessado em copiar as cores, ele quer utilizá-las por seu poder expressivo e evocativo. John Malmstad, professor da Universidade de Harvard e especialista em vanguardas russas, nota que o amarelo vivo utilizado na pintura sublinha o fato de que esta Vênus, como todas as da série, é na realidade uma prostituta: na Rússia, garotas de programa eram obrigadas a levar consigo um cartão de identificação amarelo (zheltyi bilet).

Malmstad considera Vênus “o ponto culminante [da série], a obra-prima do Neoprimitivismo, uma simplificação radical do tema” e não deixa de reparar no tom ingênuo: “ela [Vênus] não tem sequer uma pitada do erotismo e da sensualidade sedutora das musas do amor profano pintadas por Manet e Gauguin. Mais uma vez, Larionov apropriou-se de um tema da arte erudita, enquanto parodicamente o subverte tendo em vista seus próprios propósitos, em um divertimento espirituoso”.

Larionov se valeu dos elementos de uma longa tradição para desconstruir seus antecedentes compositivos através de uma reinterpretação do tema da Vênus que, à maneira do Neoprimitivismo russo, combina beleza, erudição e vontade de desafiar o gosto estabelecido – tudo isso acrescido, neste caso, de algumas notas de ludismo e inocência.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset