O senhor de 65 anos que chegou à minha sala, trazendo cópias das cartas a ele enviadas por Ana Cristina Cesar, depositava, no IMS, uma parte cara da sua memória de juventude.

Ágil e sóbrio, um pouco arredondado pelo efeito da boa cerveja que certamente costuma tomar em Berlim, onde mora, e conservando as feições de traços finos, devia formar um belo par com Ana Cristina naquele ano de 1969, quando o Brasil fervia sob o tacão dos militares, e o casal de namorados, que não passava dos 17 anos, ganhava as ruas protestando contra o regime.

Foi num desses protestos, que ficaria conhecido como a Sexta-feira Sangrenta, que Luiz Augusto Ramalho, ao lado de uma apaixonada Ana Cristina, recebeu uma bala na perna. O mais prudente seria passar um ano fora do Brasil – pensaram, e tiveram imediata aprovação dos pais: Luiz seguiu para Berlim, e Ana, para a Richmond County School for Girls, em Londres.

Longe de ser um caso de hostilidades entre Capuletos e Montecchios, as famílias dos dois eram amigas, e até mesmo compartilhavam um sítio na Serrinha, região de Resende, que chamaram de Pedra Sonora por causa de uma grande pedra que, ao ser tocada, emitia som – e conhecida pelas referências que Ana Cristina fez a ela.

Ali, os corações de Ana Cristina Cesar e Luiz Augusto deram outro rumo à amizade que os fazia, desde os 8 ou 9 anos de idade, se divertirem com os desafios que impunham aos professores. Na adolescência, passariam a trocar os poemas que escreviam, a discutir os autores que liam ou os artistas plásticos e músicos de que gostavam. Apaixonaram-se.

Se, ao contrário da tragédia shakespeariana, os namorados não foram separados pelas famílias, o destino encarregou-se de apartá-los. No momento em que se instalaram nas suas escolas estrangeiras foi que teve início a correspondência entre os dois, e, por meio dela, o desejo de amenizar a separação física: “Recebi teu cartão hoje e dele saí com os meus eu-te-amo por sua vez se atropelando uns por cima dos outros em desacordo e sem ao menos caberem num cartão outro outro tão melancólico outro” – respondia Ana Cristina ao primeiro cartão enviado pelo amado, no mesmo mês de agosto em que chegou a Londres.

O clima da cidade não a surpreendeu. Chovia sem parar, e o fog justificava o folclore londrino, o que a fez terminar o cartão com este poema em prosa: “Me levem nevoeiros britânicos. Interjeições. Quero chover com você Luiz. Olha vamos pular essas cataratas. Eu não posso entender essa ausência de pétalas Luiz Luiz nem essa parábola mais que imensa.”

A distância de Luiz a fazia rejeitar os ingleses. Estava presa ao namorado, pensava nele tanto e de tal modo que não deixava espaço para aproximações com os novos conhecidos. Tão impregnada da lembrança de seu amor se sentia que chegou a preencher com o nome LUIZ, assim, em maiúsculas, uma tabela inteira, que contém, no alto, os dias da semana, e, na lateral, as divisões, de acordo com nomenclatura criada por ela: manhãzinha; manhã; tardes loucas; tardezinhas; primeiras noites; altas noites; tempo fora do tempo. Escreveu LUIZ de cima a baixo. Era Luiz full time.

Nesta correspondência, composta de 222 folhas de fotocópias, que estará disponível para consulta depois de catalogada, Ana Cristina atinge pleno sucesso em comunicar emoção. “Luiz, meu LUIZ mais-que-maiúsculo”, transborda, um mês depois de chegar a Londres.

Ao descrever o ambiente em que vive, ela aproxima de si o destinatário da carta, trazendo-o para perto dela e transportando-se para ele. No seu quarto de estudante, instala o namorado, fazendo-o sentir, por meio do fluxo contínuo de palavras, geralmente sem pontuação, o ritmo acelerado ditado pelo amor, assim como o convida a participar de seu cotidiano londrino. Cria uma intimidade indivisa com Luiz, ao expressar de maneira voluptuosa e intelectual a um só tempo – sim, porque não faltam as observações sobre as aulas a que assiste – toda a falta que ele lhe faz. A espontaneidade do amor que devotava a ele ganhava ressonância na afinidade de visão de mundo e de gosto que compartilhavam.

Lidas em conjunto, as cartas condensam o estado amoroso com todas as nuances que lhe são próprias. Estão aí os desejos de Ana Cristina: os do corpo e da alma, suas inquietações, angústias, dores e algumas alegrias. Sua “louca criatividade” e, às vezes, a “cruel perspicácia”, nas palavras de Luiz, o encantavam, estando perto ou longe dela.

A volta para o Brasil se aproximava: “198 dias longe de você” – começa Ana a carta de 11 de abril de 1970. Ao final de um ano de estudos, ela preparava-se para retornar ao Rio, não sem, antes, visitar o namorado na cidade alemã de Aachen.

Luiz não pôde viajar, teve seu passaporte retido na Embaixada do Brasil em Bonn. Tratou, então, de se formar em sociologia e economia pelas Universidades de Frankfurt e Paris VII. Assim como Ana, seguiu carreira universitária e fez mestrado e doutorado na Universidade Livre de Berlim. Morou em vários continentes depois de deixar a Academia, para trabalhar com política externa na Cooperação Internacional, onde está até hoje.

Empurrado para a Alemanha pela Sexta-feira Sangrenta, lá fez carreira e família: tem um casal de filhos e dois netos, e é casado com Barbara Staib desde 1989.

Nunca perdeu o contato com Ana Cristina. Encontrou-a nas pouquíssimas vezes que veio ao Brasil: “Continuamos, depois de apaixonados, irmãos de alma e talvez de estética” – afirma o Luiz de hoje, a quem o Instituto Moreira Salles agradece pela generosidade da doação, enriquecedora das fontes biográficas da poeta.