Durante as décadas de 1650 e 1660, o tema da escrita de cartas estava em voga na pintura holandesa. Svetlana Alpers, autora de importantes estudos sobre a arte do século XVII, atribui o sucesso desse tema à enxurrada de manuais epistolares publicados durante o período. Um dos mais populares foi Le secrétaire à la mode, escrito por Jean Puget de la Serre. Traduzido para o holandês, o manual teve dezenove reimpressões em Amsterdã, entre 1643 e 1664.
Várias telas de Vermeer tiveram como tema uma figura feminina que lê, escreve ou recebe uma carta, sempre num ambiente privado. Ele começou a pintar esse tipo de tema por volta de 1658, com este Moça lendo uma carta à janela. Uma jovem está em pé, completamente absorta na leitura, isolada no canto de um cômodo, em frente a uma janela de onde vem toda a luz da cena. As paredes, cortinas e mesa definem os limites físicos do espaço. O reflexo de seu rosto no vidro enfatiza a natureza introspectiva de seus pensamentos. Seu mundo está quieto, silencioso.
O que nos cativa de imediato nesta pintura é o fato de que todos nós já estivemos no lugar dessa moça. Trata-se de representar uma situação que conhecemos: a ausência de uma pessoa querida, que está distante. Em tons de ocre, vermelho, azul e verde amarelado, o quadro nos fala sobre distância, solidão, falta, espera silenciosa e, sobretudo, ausência. Para dar conta de tudo isso em uma única cena, Vermeer lançou mão de alguns recursos.
O primeiro deles é a criação de uma atmosfera de domesticidade e introspecção. Em muitos de seus trabalhos, vemos o pintor holandês interessado na sondagem daqueles momentos em que estamos sós, imersos em pensamentos. São obras carregadas de um sentido de intimidade, que nos pedem um momento de pausa e nos convidam a participar da domesticidade tranquila da cena. Criar a sensação de privacidade era uma preocupação recorrente nos quadros de Vermeer dessa fase.
Para conseguir tal efeito, ele usava alguns artifícios: posicionava as figuras na parte mais afastada de um cômodo, ou atrás de grandes peças de mobília, como mesas ou cadeiras, de modo a criar uma distância e uma barreira em relação ao observador, que vê sem ser visto. Com frequência, Vermeer escolhia representar uma pessoa no momento de concentração em alguma atividade (a leitura ou a escrita, por exemplo), numa atitude de quem não percebe que está sendo observado. Além disso, podia-se utilizar um recurso vindo da pintura religiosa, que consistia em situar, no primeiro plano, pesadas cortinas. Elas contribuem para a sensação de mistério e surpresa da cena, além de reforçar o efeito de verossimilhança, pois em muitos casos a pintura é feita com tal virtuosismo que temos a impressão de ver uma cortina de verdade cobrindo parte da tela.
Exames de raios X revelaram que a cortina verde não fazia parte da primeira concepção de Moça lendo uma carta à janela. Os exames também mostraram que Vermeer fez várias outras mudanças no quadro. Svetlana Alpers esclarece que um traço característico de alguns dos maiores pintores do século XVII é que, qualquer que fosse a técnica adotada, eles costumavam fazer a composição da obra diretamente na tela, sem esboços ou estudos prévios. Essa é a razão pela qual não se encontraram desenhos preparatórios de Vermeer, Caravaggio ou Velázquez. A inserção ou retirada de elementos da cena, durante o processo de fatura do quadro, avaliando o todo da composição a casa passo, é mais um dos recursos adotados.
Outra alteração compositiva feita por Vermeer em Moça lendo uma carta à janela diz respeito à posição da figura feminina. De início, ela ficava mais à esquerda de onde está agora, e sua cabeça estava ligeiramente virada para a direita. Isso explica a incongruência do reflexo no vidro, em que vemos o rosto quase frontalmente, ao invés de perfilado. Algo parecido acontece em um quadro posterior, A lição de música – a aluna está de costas, olhando para o teclado do virginal, porém Vermeer manteve a versão anterior do reflexo, em que ela olha para o mestre a seu lado.
Inicialmente, Vermeer incluiu uma pintura dentro de Moça lendo uma carta à janela: um grande quadro, representando um Cupido, podia ser visto na parede do fundo, que ficou vazia na versão final. O Cupido é visto em outras duas obras de sua autoria, A lição de música interrompida e Senhora de pé ao virginal. Essa figura mitológica pode ser interpretada como um emblema, cujo significado consiste na recomendação de amar uma única pessoa. Ou seja, um reforço do valor de fidelidade no contexto de uma ausência.
No caso de Moça lendo uma carta à janela, entretanto, a supressão do Cupido chama nossa atenção para um ponto importante. Quando se trata do conjunto de pinturas em que Vermeer representou figuras femininas lendo, escrevendo ou recebendo mensagens, é comum a interpretação de que seriam cartas de amantes, ou, pelo menos, cartas de amor. Essas mulheres estariam, assim, trocando correspondências proibidas, e nosso olhar as flagraria numa ação clandestina. Temos que tomar cuidado com essa interpretação, que parece se sustentar em alguns poucos casos e corre o risco de tentar explicar demais o quadro. Em Moça lendo uma carta à janela, a decisão de remover a pintura com o Cupido amplia as possibilidades semânticas da cena, ao mesmo tempo que evita afastamento do tema – a comunicação com uma pessoa querida e ausente. Mas o pintor não deixa de nos fornecer uma pista, ainda que sutil: no primeiro plano, sobre a mesa, um pêssego foi escolhido dentre os demais e está cortado ao meio. Uma leitura metafórica indicaria que falta à moça a sua cara-metade.
Mais:
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10): sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15): sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset