Esta representação da passagem bíblica que envolve Betsabé e o rei Davi é uma das iluminuras de Robert Boyvin que integram um Livro das Horas feito na primeira década do século XVI. “Iluminura” é o termo que designa a pintura ou o desenho feitos a mão utilizados para decorar um texto ou conjunto de textos, geralmente manuscritos.
O episódio Betsabé é contado no segundo livro de Samuel (XI, 2-3), e marca o início da história trágica que une o rei de Israel à mulher do guerreiro Urias. Ao vê-la no banho, Davi se apaixona e a obriga ao adultério, além de mandar o marido da amada à morte a fim de se casar com ela. Deus punirá os dois, fazendo morrer o filho nascido desse amor culpado.
A cena está envolvida em uma moldura que imita duas colunas e um parapeito: funciona como estímulo para imaginarmos que olhamos através de uma janela. Assim, nos sentimos mais próximos, e a ilusão de verossimilhança se acentua. Da janela do castelo, de onde espia o banho da formosa dama, Davi estende a mão em direção àquela que deseja possuir. Flagramos o momento em que um mensageiro real sai do castelo para entregar a Betsabé a carta em que ela é chamada à presença do monarca, o que, na prática, significa convocação ao adultério.
“E mandou Davi indagar quem era aquela mulher; e disseram: Porventura não é esta Betsabé, filha de Eliã, mulher de Urias, o heteu? Então enviou Davi mensageiros, e mandou trazê-la”. A imprecisão do texto bíblico, que não menciona carta, especificamente, foi bem aproveitada pelos pintores, que representaram o episódio das mais variadas maneiras, dando mais, ou menos, destaque à missiva do rei. Em alguns casos, como em Betsabé junto à fonte, de Peter Paul Rubens, o momento escolhido foi o da entrega da carta, que ainda está na mão do mensageiro. Já Rembrandt, em Betsabé no banho com a carta de Davi, escolheu mostrar a mensagem já lida, pousada sobre o joelho da dama.
No caso da iluminura de Boyvin, a imagem é pensada para dar destaque à figura que se banha. Para ressaltar a nudez da futura rainha, o pintor inseriu na cena uma contrapartida visual: a criada, cujo corpo está coberto por um volumoso vestido e cujos cabelos também se escondem por uma touca adornada. Os cabelos avermelhados de Betsabé (que contrastam com sua pele muito branca) realçam a forma da cabeça, seguem a curva do pescoço e das costas e acompanham o movimento sensual do braço e da mão esquerda, pousada na água. Ela exibe formas sinuosas, o que evidencia seu ventre, em conformidade com a iconografia do início do século XV. Em alguns manuscritos, Betsabé esconde o sexo com uma das mãos; aqui, no entanto, ela usa um fino véu.
Boyvin incluiu na imagem uma árvore carregada de frutos que, não por coincidência, têm a mesma cor dos cabelos da mulher que se banha, em provável alusão aos percalços que envolverão os futuros filhos (frutos) do casal.
O riacho, representado em azul claro, cumpre a função de unificar a cena: parte do primeiro plano, bem na base da imagem, e segue conduzindo nosso olhar até o fundo, por trás das torres, onde se confunde com o azul das montanhas ao longe.
A pintura detém-se nos últimos momentos de inocência de Betsabé, anteriores ao recebimento da carta quando ela ainda não tinha sido arrastada ao pecado. Seu rosto, de feições quase sonolentas, dá testemunho de consciência tranquila. É inquietante pensar que esta jovem, ao banhar-se, não faz ideia do que está prestes a viver: cometerá adultério, seu marido será morto porque outro homem (o monarca!) a cobiça, será rainha e mãe de um grande rei.
O nobre não seria, no entanto, o primogênito. Após a morte do primeiro filho com Betsabé, Davi se arrepende do pecado cometido e é perdoado por Jeová, que poupa os futuros descendentes. Assim, Betsabé dará à luz Salomão, rei que se tornaria célebre por sua sabedoria e senso de justiça.
É curioso como, nesse episódio, o banho – momento de limpeza e purificação – é o ponto de partida para o pecado, ou seja, a impureza de espírito. Mas a história completa de Davi e Betsabé é, na realidade, uma história de purificação e redenção, pois, ao arrepender-se, o rei é limpo do pecado. Este desfecho resulta numa das passagens mais belas e célebres da Bíblia, o Salmo 50, também conhecido como Miserere, em que o poderoso monarca, humildemente, pede perdão a Deus: “Tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bondade; pela tua grande misericórdia, apaga o meu pecado. Lava-me de toda a iniquidade; purifica-me dos meus delitos”.
Neste ponto, retornamos ao contexto material da iluminura de Boyvin: os Livros das Horas, obras de devoção destinadas à comunidade laica. O nome desse tipo de manuscrito origina-se dos sete ofícios diurnos e noturnos que formam as horas canônicas: matinas, laudes, terça, sexta, noa, vésperas e completas. Os Livros das Horas surgem na sua forma primitiva no século XIII e, aos poucos, vão substituindo os salmos, reunidos no que ficou conhecido como saltério, junto aos fiéis, em sua recitação cotidiana das preces.
Dois séculos mais tarde, os Livros das Horas conheceriam seu apogeu: foram uma espécie de best seller da Idade Média. Ampla parcela da população letrada o possuía – de grandes príncipes a burgueses, além de numerosas mulheres. Disso resultou grande variedade de composição, tanto textual quanto pictórica, pois os manuscritos eram feitos de acordo com gostos e, claro, recursos financeiros particulares. O enriquecimento das edições dependia da demanda, que podia exigir inserção de iluminuras correspondentes a uma devoção particular. Um retrato individual ou em grupo, uma divisa, o brasão da família, associados à representação do santo padroeiro, também podiam personalizar a obra. Era comum encontrar a imagem de Betsabé no banho, sob o olhar do rei Davi, abrindo a seção dos chamados salmos penitenciais.
De Robert Boyvin, sabe-se que era de Ruão, próspera cidade do norte da França. Ali, sua família se estabeleceu no ramo do comércio de livros desde o início do século XV, e, quando Robert nasceu, os Boyvin detinham, havia tempos, um endereço comercial na parte da cidade conhecida como “portal dos livreiros”. Esse lugar agrupava diferentes atividades ligadas à escrita e à leitura: além de comerciantes de livros, reunia também impressores, fabricantes de pergaminho, encadernadores e iluminadores (no sentido de pintor de iluminuras). O que é certo é que aí Boyvin exerceu seu ofício de iluminador e, provavelmente, de livreiro.
Das poucas informações sobre ele, sabe-se ainda que, por volta de 1503, exercia liderança na comunidade artística da cidade. A última menção ao artista em documentos conservados data de 1536, quando comprou uma casa.
Mais:
Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10): sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15): sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset