Cartas de Amor é uma das telas que formam a série O Progresso do Amor, obra-prima do pintor francês Jean-Honoré Fragonard.
Em 1771, a série foi encomendada pela jovem condessa du Barry, que tinha 28 anos e era a maîtresse-en-titre (amante oficial) do rei Luís XV. A obra deveria decorar as paredes de um importante salão em forma de ferradura de sua nova residência em Louveciennes, não muito distante de Versalhes, onde se instalara a corte francesa. Foi previsto para o local um conjunto de quatro grandes telas a fim de adornar as paredes. O pintor, a condessa e o arquiteto escolheram o tema: os diferentes estágios do envolvimento romântico.
A série – que agora faz parte da Frick Collection de Nova York – deveria ser disposta no salão de modo a ser vista numa determinada ordem sequencial. A primeira tela é A perseguição, a segunda O encontro, seguida de O amante coroado e, por último, Cartas de amor.
No primeiro quadro, A Perseguição, um elegante jovem oferece uma flor àquela destinada a ser sua amante. Assustada, ela corre na direção oposta, cercada por acompanhantes. Ao fundo, vemos um conjunto de esculturas: dois Cupidos que puxam um golfinho para trás. Essas esculturas ao fundo aparecem em todas as telas de O progresso do amor, e são peças-chave para entendermos a história do conjunto. Na mitologia greco-romana, os golfinhos eram enviados por Zeus (ou Júpiter, para os romanos) para capturar belas moças. Neste quadro, o golfinho é símbolo de desejo e esperança, porém os Cupidos, resistentes, indicam que o amor ainda não está acontecendo.
No segundo quadro, O encontro, o mesmo jovem sobe por uma escada e tenta pular no jardim. A donzela está ciente de sua chegada e parece preocupada com a possibilidade de que alguém os veja. A escultura ao fundo mostra Vênus, a deusa do amor, retendo a aljava de flechas que pertence a um impaciente Cupido: a deusa do amor resiste, o amor deve esperar um pouco mais.
Na tela seguinte, O amante coroado, tudo desabrocha, floresce. O jardim está mais vivo que nunca, com peônias, rosas, laranjeiras e murtas. Os amantes, que estão sendo registrados por um desenhista, no canto direito, vestem figurinos de teatro. Os babados, fitas e laços podiam ser reconhecidos pelo público da época como figurino cênico. Cupido, por outro lado, adormeceu. Sua aljava está vazia, indicando que o trabalho foi feito. A cena representa a consumação do amor.
Concluindo a série, chegamos a Cartas de amor. Aqui, os jovens amantes (não há lugar para a velhice nesses quadros) relembram juntos sua história, relendo as cartas apaixonadas que trocaram. A moça está sentada numa espécie de altar, rodeada pelas cartas – os lacres vermelhos de algumas podem ser vistos. A fidelidade é simbolizada pelo pequeno cão que descansa tranquilamente na grama.
Fragonard era um mestre no uso da paisagem, e em Cartas de amor podemos ver como ele a empregou para transmitir uma sensação de calma e contentamento; a natureza já não está tão agitada como em O amante coroado. Quanto às esculturas, se olharmos bem, reparamos que não se trata de Vênus. É uma mulher que segura um coração junto ao peito, enquanto Cupido tenta em vão alcançá-lo. Esta era uma representação bem conhecida da amizade, cujo significado seria “uma vez entregue o coração, ele permanece entregue para sempre”.
Pode parecer confuso a história terminar em amizade, ao invés de terminar com a consumação do amor (a terceira pintura). Mas durante o Iluminismo, quando Fragonard estava ativo, muitos escritores e pensadores falaram sobre como o amor apaixonado, guardado pela virtude e pela fidelidade, resultaria em amizade duradoura, e é isso o que Fragonard quer nos mostrar com a sequência.
A condessa du Barry, no entanto, não ficou feliz com os quadros e os rejeitou. Os motivos que levaram a essa decisão ainda hoje são debatidos pelos estudiosos. Ela devolveu as telas a Fragonard e não pagou o pintor por um ano inteiro de trabalho. No salão de Louveciennes, a série foi substituída por outra, pintada no estilo neoclássico por Joseph Marie Vien (1716-1809).
Foi um duro golpe para Fragonard, que experimentou a rejeição pública de suas mais ambiciosas pinturas. Talvez por esse motivo, O progresso do amor foi a última série decorativa de peso que ele realizou. Mais tarde, um rico comerciante que era primo de Fragonard comprou o conjunto, e nessa ocasião o artista adicionou outras pinturas à série.
Depois da rejeição da condessa, o artista decidiu se ausentar de Paris por um tempo. Passou um ano viajando pela Itália, na tentativa de se recompor. Depois que retornou à França, em 1774, Fragonard procurou se adequar ao recém-popular estilo neoclássico, com superfícies lisas e composições planares, mas não obteve muito êxito. Após a Revolução Francesa, ele ocupou cargos administrativos no Louvre, porém seu trabalho perdeu o prestígio. Fragonard morreu em relativa obscuridade, em 1806.
Mais:
Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10): sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15): sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset