Senhora escrevendo uma carta e sua criada é um mergulho no mundo cotidiano que tanto fascinava Vermeer. Ele partia da observação de objetos familiares ao seu redor para então combiná-los nas composições que fazia: em várias de suas telas encontramos a mesma mesa, coberta por tapetes holandeses com motivos de folhas. O piso quadriculado e a austera cadeira de encosto reto são igualmente recorrentes em sua pintura. O casaco amarelo vivo com detalhes de arminho que vemos em Uma senhora escrevendo (c. 1665), Senhora e criada (c. 1667) e A carta de amor (c. 1669) provavelmente pertencia a Catharina Bolnes, mulher do pintor.

No período central de sua carreira, ao qual remonta a maior parte de suas telas, Vermeer pintou imagens da vida doméstica em que a composição e a representação da luz conjugam com êxito o cálculo e a graciosidade. Na maioria dessas pinturas, a paleta de cores baseia-se no amarelo, no azul e no cinza. A fonte de luz situa-se à esquerda, entra por uma janela e ilumina um aposento onde uma ou duas figuras desempenham tarefas domésticas ou de lazer. Quando vemos a reprodução fotográfica dessas pinturas, é comum termos a impressão de que elas possuem superfícies uniformes e detalhadas, mas, na realidade, não é assim. O pintor costumava criar variações de texturas depositando na tela pequenos volumes de tinta, que dão a impressão de serem grãos de luz sobre os objetos, traduzindo a vibração do jogo luminoso.

Nunca foram encontrados desenhos feitos por Vermeer, e seu método de trabalho é pouco conhecido. No entanto, especula-se que ele fizesse uso de uma camera obscura (espécie de precursora da câmera fotográfica, muito semelhante às atuais câmeras pinhole). Esse dispositivo permitia projetar sobre uma superfície plana a imagem de uma cena real, fornecendo ao pintor um ponto de partida e uma referência bidimensional. Certas distorções de perspectiva em algumas obras de Vermeer – objetos ou figuras em primeiro plano demasiadamente grandes, elementos mais brilhantes ligeiramente desfocados – são efeitos típicos de lentes rústicas, então usadas em cameras obscuras.

Embora o comedimento tranquilo das figuras e do tema lembrem as pinturas da década de 1660, Senhora escrevendo uma carta e sua criada marca uma mudança importante. Nos trabalhos anteriores, o foco da composição incidia sobre o centro da imagem. Aqui, Vermeer começa a experimentar a composição de modo que o olhar do observador seja levado a se afastar do centro da tela.

Vermeer explorou ainda uma outra variante do tema da escrita de cartas: a atitude da criada que aguarda para encaminhar a correspondência. Em outras pinturas, como Senhora e criada e A carta de amor, a reação da senhora à carta recebida encontra na atitude da criada um complemento: elas compartilham o mesmo instante. Em Senhora escrevendo uma carta e sua criada, Vermeer separa as duas mulheres, ao invés de reuni-las. Em termos emocionais e psicológicos (e até mesmo sociais), elas estão em mundos diferentes. A senhora está imersa na escrita, enquanto a criada espera silenciosamente, de braços cruzados e ar sonhador. Em primeiro plano, caídos no chão, vemos um selo vermelho, um bastão de cera de lacre e algo que pode ser uma carta com o invólucro amassado ou um manual epistolar. Por estarem completamente absortas em pensamentos, senhora e criada ainda não perceberam que esses objetos caíram da mesa. A separação entre elas é atenuada apenas pela marcada forma geométrica da moldura preta, na parede do fundo, que as une visualmente.

Mesmo experimentando novas premissas compositivas, Vermeer seguiu usando recursos conhecidos para enriquecer o significado da obra. A grande imagem vista na parede de trás, por exemplo, é uma representação do tema “Moisés salvo das águas”, muito comum na história da arte. Este tema aparece em outra obra de Vermeer, O astrônomo, de 1668, embora em menor escala. A presença dessa imagem em Senhora escrevendo uma carta e sua criada pode ser interpretada como uma alusão à providência divina, expressando o desejo de que o destinatário esteja sendo cuidado e protegido.

São poucas as pinturas feitas por Vermeer. Conhecem-se apenas algo em torno de quarenta obras. É possível que parte de seu trabalho tenha sido destruída no grande incêndio que se alastrou por Delft, cidade do pintor, em 1654, após a explosão de um depósito de munições. Mesmo assim, acredita-se que o total de sua obra nunca tenha sido muito maior do que aquilo que conhecemos hoje. Podemos atribuir a escassa produção ao fato quase certo de que Vermeer se dedicava a outras atividades, além da pintura, para ganhar a vida. Seu pai era comerciante de arte e proprietário de uma estalagem no centro de Delft, negócios que provavelmente foram herdados pelo filho. Ainda assim, Vermeer teve dificuldades para sustentar sua numerosa família de onze filhos. Enredado em graves problemas financeiros, faleceu deixando a mulher em péssima situação. Durante sua vida, Vermeer não vendeu Senhora escrevendo uma carta e sua criada. Foi a sorte de Catharina que, viúva, entregou esta e outra pintura a um padeiro local para saldar seus gastos com pão.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (3): sobre Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá, de Jacob Lawrence
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset