Entre 1940 e 1941, o jovem artista norte-americano Jacob Lawrence realizou uma série de sessenta pequenas pinturas a têmpera, cada uma delas acompanhada por uma legenda que servia também de título. O tema desse conjunto de imagens era a Grande Migração (Great Migration), como ficou conhecida a movimentação em massa ocorrida nos Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial, na qual um imenso contingente de norte-americanos negros deixou o Sul rural em direção ao Norte urbano.

Cartas de parentes no Norte falavam da vida melhor de lá é a tela de número 33. Vista a partir de cima, a mulher que ocupa o centro da imagem está deitada numa grande cama. Ela tem nas mãos uma folha de papel azul claro, uma carta, que lê em voz alta. A seu lado, uma menina ajoelhada, talvez sua filha, sustenta a cabeça com as mãos enquanto escuta (será que também chora, ou apenas está sonolenta?). Lawrence utiliza nesta pintura, e nas demais obras da série, um recurso a que chamamos síntese cromática: a escolha de uma gama limitada de cores para construir a imagem. Neste caso, são apenas sete: preto, branco, verde, amarelo, marrom e rosa, mais o azul pálido somente na carta.

Além de serem apenas algumas, as cores tampouco têm gradações de tonalidade. Elas são aplicadas na tela sem a preocupação de reproduzir efeitos de sombreamento e volume. Mesmo os dois tons de verde obedecem a esse critério, pois entre o mais claro e o mais escuro não há meios-tons. É por isso que a imagem parece achatada, e as figuras, objetos e fundo dão a impressão de estarem colados uns sobre os outros. Mas nem por isso temos a sensação de confusão, pois os vários planos da imagem se diferenciam uns dos outros graças à pincelada aparente, que não esconde o percurso do pincel: vemos como, por exemplo, o fundo marrom foi executado com pinceladas verticais, enquanto a cama e o cobertor foram pintados com gestos horizontais ou inclinados.

Também na composição o pintor optou pela redução ao essencial, com um mínimo de elementos: mulher e criança, a cama com travesseiro e cobertor, a carta e, ao fundo, uma sequência de barras amarelas, abstratas, que aludem a grades, cela, jaula, prisão. Seguindo o mesmo princípio de síntese, esses poucos elementos são construídos a partir de figuras geométricas básicas. A mulher é composta por dois triângulos sobrepostos, um menor formado pelo cabelo e o rosto, e outro maior, formado pelo corpo e braços dobrados; a cama é uma sequência de triângulos invertidos, e a menina cabisbaixa é um retângulo. Podemos pensar que, ao escolher uma linguagem sintética, tanto nas cores quanto na composição, Lawrence não estava preocupado em descrever detalhadamente uma cena. Estava mais interessado em dar forma a um ambiente que refletisse uma situação de precariedade e privação, e buscava uma comunicação direta e ágil com o público.

Ao representar uma interação serena, escolhendo para isso um ambiente íntimo – o quarto –, o pintor nos fala da importância das cartas na manutenção de laços pessoais através de grandes distâncias e grandes dificuldades. Lawrence era, ele mesmo,  filho de migrantes, e sabia da importância desses laços epistolares. Anos depois, descrevendo a figura central desta tela, ele disse: “Talvez ela represente minha mãe lendo uma carta, ou minha irmã”. Aqueles que haviam partido para o Norte ansiavam pelo reencontro com pessoas queridas, e enviavam pelo correio descrições convidativas de suas novas vidas. As respostas a essas missivas, por sua vez, davam notícias da situação local e preservavam vínculos familiares e de amizade.

No período da Grande Migração, a correspondência foi responsável pela formação de uma rede de  comunicação altamente eficaz que difundia as vantagens da vida no Norte. Relatos escritos por amigos e familiares que haviam migrado chegavam ao Sul e eram passados de mão em mão, lidos em voz alta nas reuniões da igreja e em eventos sociais. Eles falavam de liberdades civis que eram impensáveis ali, como direito de voto e escolas integradas, em que crianças negras e brancas estudavam juntas. Muitas cartas ofereciam conselhos sobre como conseguir trabalho e indicavam quais salários se poderia esperar de um emprego numa fábrica ou canteiro de obras. Grande parte dessa correspondência só foi possível graças ao projeto Entrega Rural Gratuita (Rural Free Delivery) do Serviço Postal dos Estados Unidos. Entre 1896 e 1930, esse projeto disponibilizou o serviço de correio para quase sete milhões de famílias rurais, para as quais a troca regular de cartas seria um luxo inacessível.

A longa trajetória artística de Jacob Lawrence (que permaneceu ativo até sua morte, em 2000) foi moldada pelo engajamento nos debates de sua época a respeito da escrita e da representação visual da história afro-americana. O envolvimento do artista com essas questões pode ser medido pela intensidade de seu processo de trabalho, baseado na pesquisa: antes de iniciar a série da Grande Migração, ele passou meses na Biblioteca Pública de Nova York estudando fotografias, livros, revistas, documentos históricos e qualquer outro tipo de material que se relacionasse com o tema. A obra resultante de seu trabalho trouxe às artes visuais uma abordagem radicalmente nova da experiência negra contemporânea, e o artista se tornaria célebre em seu país. As pequenas telas de Lawrence nos mostram imagens de opressão e violência, mas também cenas de esperança, força, união e perseverança.

Mais:

Cartas na pintura (1): sobre Moça lendo uma carta à janela, de Vermeer
Cartas na pintura (2): sobre Senhora escrevendo uma carta e sua criada, de Vermeer
Cartas na pintura (4): sobre Séverine, de Louis Welden Hawkins
Cartas na pintura (5): sobre O mercador Georg Gisze, de Hans Holbein, o Jovem
Cartas na pintura (6): sobre Quarto de hotel, de Edward Hopper
Cartas na pintura (7): sobre Vênus, de Mikhail Larionov
Cartas na pintura (8): sobre Betsabé, de Robert Boyvin
Cartas na pintura (9): sobre As jovens, de Francisco de Goya
Cartas na pintura (10)
: sobre Doente, de Gabriele Münter
Cartas na pintura (11): sobre Cartas de amor, de Jean-Honoré Fragonard
Cartas na pintura (12): sobre A morte de Marat, de Jacques-Louis David
Cartas na pintura (13): sobre Más notícias, de Rodolfo Amoedo
Cartas na pintura (14): sobre série de retratos de um carteiro, de Vincent van Gogh
Cartas na pintura (15):  sobre A cortesã Hanazuma lendo uma carta, de Kitagawa Utamaro
Cartas na pintura (16): sobre A carta, de Fernando Botero
Cartas na pintura (17): sobre Tinta L. Marquet, de Eugène Grasset